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segunda-feira, 30 de maio de 2016

CRÍTICA AO MITO DA EFICIENCIA DO "MERCADO"


                                                                                       Jefferson José da Conceição

Este artigo destaca a falácia do argumento que diz que o “mercado” é sempre mais eficiente do que a ação estatal.  O mito da eficiência do mercado – sim, trata-se de um mito, uma falácia, um argumento logicamente inconsistente – vai e volta de tempos em tempos.  No Brasil, neste momento, está na moda acreditar e reproduzir o mito.

Está na moda, em parte, porque o argumento vai ao encontro do processo de “endireitização” da sociedade brasileira. Como mostrei em artigo anterior, intitulado “A Direita ‘saiu do armário’”, um dos elementos centrais que, no campo econômico, caracterizam o pensamento da Direita é a defesa do capitalismo, da propriedade privada e da livre iniciativa. Em síntese, a defesa do mercado contra a ação do Estado.

De fato, o pensamento majoritário da Direita prega o Estado Mínimo. De acordo com esta visão, o Governo deveria interferir o menos possível na atividade econômica. A presença do Estado geraria “ineficiências” de toda ordem. Não caberia ao Estado produzir bens e serviços. O Governo deveria restringir também seu desejo de regular e induzir os agentes econômicos. 

Cabe ter claro, entretanto, que, em relação ao tamanho do Estado e sua intervenção na economia, há um amplo espectro de posicionamentos na Direita: desde aqueles que fendem o Estado Mínimo até aqueles que apregoam um Estado Forte (caso da Extrema Direita).

No caso brasileiro atual, em tempos de suposta demonização da sociedade contra a corrupção no interior do Estado Brasileiro, voltam à tona as propostas e políticas econômicas e sociais que põem em xeque a eficiência de programas conduzidos pelo Governo como a Política de Valorização do Salário Mínimo, o Bolsa Família, o Prouni, o Minha Casa minha Vida. As críticas liberais também miram outras intervenções e dirigismos: o Sistema Único de Saúde (SUS); a Política Industrial; o monopólio da Petrobrás na área petrolífera; o financiamento dirigido realizado por entidades como o BNDES, entre outros. 

Liberalismo como ideologia dominante

Em suas origens, o Liberalismo representou uma doutrina revolucionária às ideias dominantes prevalentes na Idade Média. Mas foi durante a Revolução Francesa que as ideias liberais explodiram com força, como crítica à velha ordem monárquica.

Do século XVIII aos dias de hoje o liberalismo constituiu-se no pensamento econômico dominante entre os acadêmicos e policy makers da maior parte dos países desenvolvidos. Ele também ganhou muitos adeptos nos países subdesenvolvidos.

É verdade que existem ondas de maior ou menor hegemonia deste tipo de raciocínio sobre as ideias prevalentes em determinado período. Por exemplo, entre a Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, várias teorias e práticas econômicas que são críticas ao liberalismo – como o Keynesianismo, o "Welfare State" e o tripartismo - foram ensinadas e difundidas em todo o mundo capitalista. Por outro lado, entre as décadas de 1980 e 1990, vigoraram com plenitude as ideias "neoliberais". No limite, estas ideias apenas dão uma nova roupagem mais moderna ao pensamento liberal.

A lógica central do pensamento liberal repousa no credo mítico dos benefícios proporcionados pelo livre funcionamento do ‘mercado’. Adota-se a premissa de que os mecanismos automáticos gerados pelas forças do mercado são os mais apropriados, em qualquer tempo histórico, para organizar e conduzir as nações ao desenvolvimento econômico e social, isto é, à sua prosperidade, harmonia e equilíbrio. O mercado é visto, pois, como um demiurgo sobre todos os indivíduos e instituições.

Karl Polanyi e “a Grande Transformação”: dura crítica ao liberalismo

Karl POLANYI, em seu famoso livro "A grande transformação", escrito na década de 1940, foi um dos críticos mais fervorosos a este tipo de pensamento. Entretanto, este autor começa por reconhecer a grande influência exercida pelo liberalismo:

"O liberalismo econômico foi o princípio organizador de uma sociedade engajada na criação de um sistema de mercado. Nascido como mera propensão em favor de métodos não burocráticos, ele evoluiu para uma fé verdadeira na salvação secular do homem através de um mercado autoregulável".

O laissez-faire – expressão francesa que sintetiza uma economia que funciona livremente sem restrição ou regulamentação estatal de qualquer espécie - é o eixo em torno do qual gira a filosofia social e econômica dos liberais. Na visão liberal, o laissez-faire decorre do desenvolvimento natural e supostamente lógico da humanidade rumo à troca de mercadorias e à distribuição do trabalho entre os homens, como sistema que se opõe a uma economia de subsistência e de isolamento social. Assim, a visão liberal naturaliza o mercado, como algo que nasceu historicamente com a própria sociedade.

Entretanto, de acordo com os liberais, o laissez-faire não é apenas uma decorrência natural da evolução humana. Ele também é o estágio definitivo, final, mais evoluído desta evolução. Isto porque, é por meio de uma economia aberta e sem restrições que os países podem atingir a melhor e mais eficiente alocação de seus recursos econômicos. É o livre mercado que permitiria o pleno emprego do capital, da terra e do trabalho e, por conseguinte, o equilíbrio harmônico no uso dos fatores de produção.

São as seguintes as premissas básicas sobre as quais se assenta a crença de que o mercado é a melhor forma de organização econômica e social:

a) O egoísmo é um sentimento inerente ao ser humano, que leva à competição e à rivalidade entre os indivíduos;

b) A competição egoísta por maiores lucros não é apenas benéfica para os indivíduos (que dão vazão ao seu egoísmo), mas para toda a sociedade, pois resultaria sempre na plena utilização de todos os recursos econômicos dessa sociedade (força de trabalho, maquinário etc);

c) É a competição no mercado que faz com que haja a melhoria da qualidade dos produtos e a redução constante dos custos para produzi-los, por meio do incremento da inovação e da produtividade.

Consoante com esta visão, os homens (principalmente os homens de negócios, os empresários) deveriam dispor da mais ampla liberdade para por em ação os seus impulsos egoístas por maiores ganhos (lucros). É este instinto que faz com que eles busquem concorrer entre si para maximizar seus ganhos. A concorrência, por sua vez, leva os empresários a procurarem baixar seus preços, por meio da redução dos custos de produção. É a competição também que promove a melhoria da qualidade dos produtos. Por fim, ela acaba por estimular a permanente inovação e produtividade de todo o processo produtivo.

O "pai" do pensamento econômico liberal é Adam SMITH, autor de "A Riqueza das Nações". Smith, cuja obra é do século XVIII, resume com clareza (mas não deixa de ser surpreendente também sua franqueza) as vantagens de uma sociedade organizada em torno do livre mercado:

"Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro, do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua preocupação com o seu próprio interesse".

E complementa Smith:

"Todo indivíduo... esforça-se continuamente para encontrar o emprego mais vantajoso para o capital, seja ele qual for, que estiver sob o seu comando".

Vale dizer: é na concorrência egoísta entre os produtores dos mais variados setores, pelo maior lucro possível para cada um, que a sociedade extrairia os maiores benefícios para si, em termos de qualidade, preços e quantidade oferecidas. Neste modelo de equilíbrio não haveria desemprego e nenhum desperdício dos fatores de produção.

Decorre deste tipo de pensamento a rejeição ao Estado e à regulação social como instrumentos que contribuem para o alcance da melhoria do bem estar econômico e social. Segundo a ideologia liberal, as instituições estatais são ineficazes, ineficientes e propensas a gerar corrupção.

Nesta ideologia, a interferência do Estado é tolerada apenas em áreas nas quais a iniciativa privada, por motivos diversos (como a possibilidade de sua autodestruição), tem dificuldades para atuar, tais como a defesa externa, a Justiça (que teria a função, entre outras, de proteger a propriedade privada e a garantia do cumprimento dos contratos) e a preservação da ordem interna por meio do poder de coerção policial.

Karl POLANYI aponta que esta crença liberal no equilíbrio harmônico que deriva do livre funcionamento do mercado é fruto da própria transformação histórica da sociedade, desde o século XVII e XVIII, rumo a uma economia mercantilizada, na qual toda a sociedade foi gradativamente reduzida ao mercado. Para ele, a grande transformação histórica do trabalho, da moeda e da terra em mercadorias, ocorrida ao longo de vários séculos, é vista como um trágico desastre pela qual enveredou a civilização humana. A transformação da sociedade em mercado liquidou todas as redes de proteção geradas socialmente para impedir sua autodestruição na forma da desigualdade, pobreza e violência. O resultado desta transformação das instituições sociais em "mercadorias" foi a gradativa erosão social.

Deriva das ideias de POLANYI, que somente pode existir o "mercado" se ele estiver ancorado em regras e regulações estabelecidas pela própria sociedade. Ou seja, o mercado não deve ser visto como um fim em si mesmo. Ele só tem sentido se estiver previamente regulado e controlado por decisões tomadas pelos próprios homens.

Outros exemplos de autores críticos ao liberalismo

Robert REICH, em seu artigo intitulado "Sobre mercados e mitos", também faz uma dura crítica às ideias liberais:

"A ideia de um mercado livre - de alguma maneira à margem da lei - é uma fantasia. O mercado não foi criado por vontade divina. É uma criação humana, é a totalidade, em constante transformação, do conjunto de critérios sobre os direitos e as responsabilidades individuais. O que é meu? O que é seu? Como definimos e combatemos as ações que ameaçam esses critérios: o furto, a força, a fraude ou a negligência? O que devemos e o que não devemos comercializar (drogas, sexo, votos, bebês)? Como devemos fazer para cumprir essas decisões e que apenas devem ser aplicadas às transgressões?

À medida que uma cultura acumula respostas a essas perguntas, cria uma versão de mercado. Essas respostas não se encontram na lógica ou na análise somente. Diferentes culturas em diversas épocas têm respondido de maneiras distintas. As respostas dependem dos valores assumidos por uma sociedade: a importância dada à solidariedade, à prosperidade, à tradição, à religiosidade etc.

Nas sociedades modernas, o governo é considerado o agente principal, pois define e faz cumprir as normas que estruturam o mercado. Os juízes e os legisladores, assim como os executivos e os administradores do governo, alteram e adaptam interminavelmente as regras do jogo; quase sempre de forma tácita, porém sempre sob a vigilância e, às vezes, sob a mão de interesses afetados pelos resultados de determinadas decisões".

O economista coreano Há-Joon CHANG, em seu estudo "kicking away the ladder" (em tradução livre: "Chutando para longe a escada"), também faz uma forte crítica ao ideário liberal. A contribuição deste autor está em que sua crítica se dá por meio da recuperação da própria trajetória dos países considerados desenvolvidos e que hoje são defensores dos princípios liberais.

CHANG elaborou profunda crítica às ideias liberais que tiveram ampla difusão internacional, a partir do chamado Consenso de Washington no final dos anos 80. A partir de uma perspectiva histórica, Chang sustenta ser uma falácia a ideia (néo) liberal, defendida por pesquisadores e instituições dos países desenvolvidos, com grande adesão entre os países não desenvolvidos, de que o livre mercado é melhor caminho para os países atrasados alcançarem o desenvolvimento.

Chang mostra que os países atualmente desenvolvidos que foram por ele estudados (Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, França, Suécia, Bélgica, Holanda, Suíça, Japão, Coréia, Taiwan) se utilizaram de forte intervenção do Estado para proteger e promover sua indústria infante em seus processos de "catching up" (elevação rumo ao desenvolvimento).

Em sua pesquisa, Chang diagnosticou que políticas e instrumentos adotados pelo Estado foram fundamentais à industrialização desses países, tais como: elevação de tarifas de importação; restrições quantitativas (quotas) às importações; restrições voluntárias às exportações de países concorrentes; redução de impostos sobre exportação; subsídios à exportação; impostos anti dumping; importação de trabalhadores qualificados; investimento estatal em pesquisa e tecnologia; construção de infraestrutura; reforma educacional; processos de cooperação envolvendo setor público e privado.

Para Chang, contudo, esses países hoje avançados após terem atingido o estágio de países desenvolvidos, procuram "chutar para longe a escada", por meio da qual os países atrasados (ou em desenvolvimento) poderiam atingir o mesmo estágio. Assim, os países desenvolvidos, por intermédio da difusão de teorias e políticas de órgãos multilaterais e de fomento, que os países em desenvolvimento adotem medidas econômicas liberalizantes – diferentemente do que fizeram eles mesmos (países atualmente desenvolvidos) no passado.

Democracia e crise econômica versus livre mercado

Acrescente-se que o mito da eficiência do livre mercado passou a conflitar com a própria evolução da democracia ao longo do século XX, especialmente após as duas guerras mundiais. Na Europa e nos EUA, as elites aceitaram, de certa forma, a construção de um Estado de bem-estar social, de forma a reduzir a pobreza e aumentar a igualdade entre os cidadãos.

A grande crise econômica vivida pelo capitalismo no início da década de 1930 também contribuiu bastante para desmistificar o mito da "eficiência do livre mercado". Os governos adotaram no início da crise praticamente todo o receituário liberal para combater a crise: abertura econômica, equilíbrio das contas públicas, livre funcionamento do mercado de trabalho, combate aos monopólios, como é o caso dos sindicatos de trabalhadores, etc. Apesar disso, o desemprego e a crise somente avançaram no período. Somente quando o Estado passou a atuar mais decisivamente, por meio do aumento do investimento público, é que a crise da produção e do emprego foi solucionada.

Por conseguinte, hoje, o atual liberalismo convive com vários tipos de correntes críticas ao seu pensamento. Estas correntes procuram desmistificar a ideia da maximização do bem estar econômico e social por via do livre mercado. Em vários destes trabalhos que se opõem ás ideias do liberalismo, procura-se questionar a validade das premissas liberais. Assim, por exemplo, a premissa da existência de um mercado concorrencial formado por pequenos produtores independentes é apontada como uma premissa falsa, uma falácia.

Estes trabalhos mostram que hoje praticamente todos os setores econômicos são liderados e controlados por grandes grupos econômicos oligopolistas, que na maioria das vezes atuam na forma de cartéis, controlando preços e quantidades ofertadas, impedindo qualquer livre funcionamento das leis da oferta e da procura.

Outra premissa que gera bastante polêmica é a de que os homens são naturalmente egoístas. Para muitos autores o egoísmo e o resultado de determinadas circunstâncias históricas e sociais. Portanto, se alteradas estas circunstâncias os homens poderão deixar de ser egoístas.

Em uma sociedade que efetivamente prega pelo avanço da democracia e justiça social, combinadas à eficiência econômica, há certa concordância de que é fundamental o estabelecimento de mecanismos de regulação do mercado, desde o processo de organização da produção, da distribuição, circulação e do consumo.

Registro, ao final, que parte desse texto foi extraído, com os devidos ajustes, de outro artigo meu, desta vez em parceria com Maria da Consolação Vegi, intitulado “Livre Mercado versus responsabilidade social: a controvérsia à luz da Economia e do Direito”,  publicado  na. Revista JusNavigandi,  n 1718 em 15/3/ 2008.

Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS. É Diretor Técnico da Agência São Paulo de Desenvolvimento - Adesampa. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre 2009 e julho de 2015. Foi Diretor Superintendente do SBCPrev entre agosto de 2015 e fevereiro de 2016.
Artigo publicado no site www.abcdmaior.com.br, na coluna blogs, em 30/5/2016.

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