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terça-feira, 21 de setembro de 2021

“ÍNDICE DE SAÚDE FINANCEIRA DO BRASILEIRO (I-SFB)”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA FEBRABAN*

Nota técnica

 

“ÍNDICE DE SAÚDE FINANCEIRA DO BRASILEIRO (I-SFB)”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA FEBRABAN*

                                                                                          Ana Carolina Tosetti Davanço[1]

Cláudio Pereira Noronha[2]

Jefferson José da Conceição[3]

Vivian Machado[4]

 Resumo Executivo

 A nota técnica apresenta, sucintamente, o novo indicador anunciado pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban), intitulado “Índice de Saúde Financeira do Brasileiro,  I-SFB, sua metodologia e primeiros resultados de sua aplicação para o ano de 2020. Após a apresentação, a nota tece comentários críticos preliminares à pesquisa. Conclui-se que, em função dos problemas metodológicos, os resultados percentuais encontrados não parecem refletir a realidade da “saúde financeira dos brasileiros” como um todo. A média de 57 (numa pontuação que varia de zero a 100) para a população brasileira parece excessivamente alta em face do que vivenciamos empiricamente e de outros indicadores disponíveis (como o índice de pobreza absoluta, de inadimplência, entre outros). A nota conclui que entre os objetivos não explicitados pela Febraban estão: a) melhorar da imagem dos bancos; b) atender parcialmente à Lei nº 14.181/2021, conhecida como “Lei do Superendividamento”, que, entre outras medidas, promove a inclusão, no Código de Defesa ao Consumidor (CDC), do “fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores” (...); e estabelece que as empresas que fornecem o crédito passam a ser corresponsáveis pela concessão do crédito; c) tirar o foco sobre os elevados spreads bancários e jogar o problema na gestão dos próprios indivíduos e famílias; d) mostrar que a saúde financeira dos brasileiros é um problema, mas não tão grande;  e) estimular a previdência complementar; f) reforçar, como “senso comum”, que o problema financeiro do brasileiro não está em sua “baixa renda” (baixos salários, falta de direitos), mas na falta de habilidade de gerir o que ganha.

 

 

Palavras-chave: educação financeira; indicador de saúde financeira; endividamento individual; finanças individuais.

 

 

Introdução

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) divulgou, em julho de 2021, um novo indicador financeiro: o “Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB)”, realizado em cooperação técnica com o Banco Central, outras instituições financeiras e estudiosos ligados ao mundo acadêmico. Trata-se, segundo a entidade, de “uma ferramenta para diagnóstico da saúde financeira geral das pessoas, bem como de diferentes dimensões que o compõem”.

De modo ambicioso, a Febraban enaltece o indicador e diz que o I-SFB estará disponível gratuitamente a todos os brasileiros, apontará dimensões educacionais a serem trabalhadas em programas didáticos e contribuirá para o aperfeiçoamentode políticas públicas e da ação privada em prol da educação financeira.

Esta nota técnica faz uma breve síntese dos objetivos e da metodologia da pesquisa, expõe os principais resultados da aplicação do índice para o ano de 2020 e levanta algumas considerações críticas sobre a referida pesquisa.

 

Antes de apresentarmos o Índice de Saúde Financeira construído pela Febraban, cabe realçar que o tema da educação financeira vem sendo cada vez mais objeto de atenção entre especialistas ligados a órgãos públicos e privados, bem como entre pesquisadores ligados ao mundo acadêmico. Na literatura internacional, diversos trabalhos como os de LUSARDI (2003); WALSTAD et al. (2010); FERNANDES et al. (2013); KAISER & MENKHOFF (2017); e HASTINGS et al. (2021) se debruçaram sobre o tema. Igualmente são vários os estudos na literatura nacional, destacando-se, entre outros, os de LUSARDI (2003); LUCCI (2006); MATTA (2007); SAVOIA et al. (2007); e VIEIRA et al. (2011).

 

1. Breve apresentação do “Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB)”

 

São dois os objetivos da Pesquisa Índice de Saúde Financeira do Brasileiro, declarados pela Febraban:

 

a)    Em âmbito micro, fazer o diagnóstico individual de saúde financeira, para identificar lacunas e personalizar estratégias de educação financeira;

 

b)    Em âmbito macro, permitir uma análise agregada dos brasileiros, para contribuir no aperfeiçoamento de políticas públicas e da ação privada em prol da educação financeira”.

 

Na pesquisa, o conceito de saúde financeira é posto da seguinte maneira:

 

“Ser capaz de cumprir suas obrigações financeiras correntes e tomar boas decisões financeiras; ter disciplina e autocontrole para cumprir objetivos; sentir-se seguro quanto ao futuro financeiro; ter liberdade de fazer escolhas que permitam aproveitar a vida”.

 

Segundo a Pesquisa, a saúde financeira estaria associada a cinco principais dimensões:

 

Habilidade financeira (capacidade de tomar decisões financeiras; buscar entender informações importantes para a vida financeira);

 

Comportamento (disciplina e controle; saber cumprir metas; não gastar muito; saber poupar);

 

Proficiência financeira (somatória de habilidade e comportamento financeiro);

 

Liberdade financeira (ter opções na vida; não se sentir constrito, amarrado, limitado);

 

Segurança (capacidade de cumprir as obrigações financeiras; percepção sobre a própria situação financeira e se ela é fonte de preocupação e estresse na sua vida).(FEBRABAN, 2021)

 

Para realizar as perguntas do questionário, afirma-se que a Pesquisa partiu de quatro protocolos internacionais, a saber: Financial Well-Being Scale (CFPB); Skill Scale (CFPB); Financial Health Score (CFSi); e Financial Capability Score (University of Wisconsin). Em seguida, realizou-se, numa primeira fase (julho a agosto de 2020) um survey com mais de 500 adultos (acima de 18 anos com relacionamento com o Sistema Financeiro Nacional); em seguida, na pesquisa de campo da segunda fase (setembro a novembro de 2020), 5.220 entrevistas com adultos de 18 anos ou maisque mantém relacionamento com o sistema financeiro nacional, sendo que, destes, 4.863 compuseram a amostra ponderada das pessoas que responderam sobre renda

 

Na pesquisa, os entrevistados são questionados sobre a sua concordancia em relação a um conjunto de afirmações postas, de modo simétrico (“O quanto esta frase descreve você ou sua situação atual?”). As respostas são “nada”, “pouco”, “mais ou menos”, “muito”, ou “totalmente”, a título de exemplo.

 

Assim, por meio de uma escala do tipo Likert, busca-se medir a posição dos entrevistados em cada uma daquelas cinco dimensões referidas. Segundo os elaboradores da pesquisa, as questões poderiam ser lidas para os respondentes ou ser respondidas via autoaplicação (formulário online).

 

Pelo método, para cada pergunta corresponde uma determinada pontuação (de zero a 100). A somátória determina uma faixa de classificação (que vai de “ruim” à “ótima”).

 

O questionário que fez parte da pesquisa está reproduzido nos quadros em anexo.

 

2. Principais resultados do I-SFB aplicado entre setembro e novembro de 2020

 

Apresentamos a seguir os principais resultados do indicador, a partir de amostra com 4.863 entrevistados pela instituição (Febraban), entre setembro e novembro de 2020.

 

a) Em uma pontuação com variação de zero a 100, a média do I-SFB verificada, entre os entrevistados, foi de 57, sendo que a distribuição dos pesquisados apresentou a seguinte situação de saúde financeira por faixa:

 


 

 

Distribuição dos Pesquisados por Faixa de Saúde Financeira

(Brasil, setembro a novembro 2020)

8,1%

Ótima

Vida financeira sem estresse. Finanças proporcionam segurança e liberdade financeira

19,2%

Muito boa

Domínio do dia a dia, mas precisa dar o salto do patrimônio

14,3%

Boa

Básico e bem feito

10,1%

OK

Equilíbrio financeiro no limite – com pouco espaço para erro

15,6%

Baixa

Primeiros sinais de desequilíbrio e risco de entrar em alto estresse financeiro

21,1%

Muito baixa

Risco de atingir situação crítica

11,6%

Ruim

Círculo de fragilidade, estresse e desorganização financeira

Fonte: Febraban. I-SFB. Quadro ajustado pelos autores.

 

 

 

I-SFB por variável geográfica e faixa de saúde financeira

(Brasil, setembro a novembro 2020)

Faixas de saúde financeira

 

Ótima

Muito boa

Boa

OK

Baixa

Muito baixa

Ruim

Amostra

8,1%

19,2%

14,3%

10,1%

15,6%

21,1%

11,6%

 

 

 

 

 

 

 

 

Capital e RM

8,1%

19,1%

14,9%

9,6%

14,9%

20,3%

13,2%

Interiores

8,0%

19,4%

13,9%

10,4%

16,2%

21,7%

10,4%

 

 

 

 

 

 

 

 

Sul

13,1%

22,2%

14,2%

9,4%

14,4%

18,2%

8,4%

Sudeste

6,8%

19,4%

14,1%

9,8%

14,0%

21,8%

14,1%

Centro-Oeste

7,6%

21,9%

14,2%

9,6%

16,6%

19,2%

10,9%

Nordeste

6,0%

13,3%

13,8%

11,9%

19,8%

24,1%

11,0%

Norte

6,8%

18,5%

17,0%

9,8%

15,7%

22,2%

10,2%

Fonte: Febraban. I-SFB. Quadro ajustado pelos autores.

 

 

I-SFB por variável sociodemográfica e faixa de saúde financeira

(Brasil, setembro a novembro 2020)

Faixas de saúde financeira

 

Ótima

Muito boa

Boa

OK

Baixa

Muito baixa

Ruim

Amostra

8,1%

19,2%

14,3%

10,1%

15,6%

21,1%

11,6%

 

 

 

 

 

 

 

 

Homem

10,1%

21,3%

15,2%

10,2%

16,1%

18,8%

8,3%

Mulher

5,9%

17,2%

13,4%

9,9%

15,1%

23,4%

15,1%

 

 

 

 

 

 

 

 

18 a 24 anos

6,6%

18,2%

18,4%

11,7%

20,8%

16,9%

7,4%

25 a 29 anos

6,9%

17,8%

13,5%

11,1%

16,7%

21,0%

12,9%

30 a 34 anos

7,7%

18,3%

14,5%

10,8%

14,6%

21,6%

12,5%

35 a 39 anos

8,3%

19,5%

12,3%

8,8%

15,8%

22,1%

13,2%

40 a 59 anos

8,5%

19,2%

13,9%

9,3%

13,1%

22,8%

13,2%

60 anos ou mais

9,7%

21,7%

13,6%

9,2%

13,9%

21,5%

10,4%

Fonte: Febraban. I-SFB. Quadro ajustado pelos autores.

 


 

A pesquisa apresentou os seguintes resultados agregados:

 

i) 69,4% empatam ou gastam mais do que ganham;

 

ii) 65,7% pensam bastante antes de gastar dinheiro;

 

iii) Apenas 21,9% dariam conta de uma despesa inesperada grande;

 

iv) 58,4% afirmam que de alguma maneira isso reflete na vida familiar;

 

v) Para 53,5%, compromissos financeiros reduziram o padrão de vida;

 

vi) Poucos (34,1%) se sentem capazes de reconhecer um bom investimento;

 

vii) Somente 37,9% conseguem perceber que precisam buscar orientação;

 

viii) 64,7% não têm segurança sobre seu futuro financeiro; e, por fim,

 

ix) 6 em cada 10 consideram que a maneira como cuidam de suas finanças não os permite aproveitar a vida.

 

Com base nestes números, o relatório da Pesquisa conclui que:

 

O padrão das respostas revela pessoas que lutam por uma vida financeira estruturada, para fechar as contas do mês e a difícil missão que é ter reservas para emergências (FEBRABAN, I-SFB, 2021).

 

3. Considerações críticas preliminares sobre a Pesquisa Febraban “Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB)”

 

Antes de tecer comentários sobre a Pesquisa Febraban “Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB), cabe iniciar recuperando a forma como por CONCEIÇÃO, MACHADO & YAMAUCHI (2020) analisaram outra pesquisa da mesma entidade, a Pesquisa Febraban de Tecnologia, realizada anualmente. A referida Pesquisa tem o objetivo de mapear o estágio da tecnologia bancária no Brasil e suas tendências. Nas palavras dos referidos autores:

 

Pesquisas periódicas sobre processos econômicos e sociais do Brasil têm uma importância grande, em face de ainda serem escassas as estatísticas em muitas das áreas vitais para o desenvolvimento do País. Levantamentos sistemáticos e regulares permitem construir séries mais longas e aprofundar o conhecimento sobre os fatores estruturais e conjunturais que influenciam na evolução nacional e, com isto, na confecção e execução de políticas públicas e privadas adequadas. Neste sentido, a Pesquisa Febraban de Tecnologia, feita anualmente pela Federação Nacional de Bancos (Febraban), com os principais bancos que operam no País, tem o evidente mérito de contribuir com relevantes indicadores a respeito do desenvolvimento tecnológico das instituições  financeiras e das formas como ocorrem as movimentações bancárias por parte dos clientes, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas  (...). [Entretanto], um problema inerente às pesquisas dessa natureza reside na dificuldade em se realizaro devido distanciamento entre, por um lado, o levantamento dos dados e a leitura analítica dos resultados, e, por outro, os interesses e a estratégia da entidade empresarial que financia a pesquisa.

 

Esta colocação feita pelos autores parece servir também para a Pesquisa “Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB), tendo em vista as considerações a seguir.

 

1. A princípio, a Pesquisa I-SFB-Febraban não deixa claro que universo efetivamente a amostra representa: a população brasileira? Todos os clientes dos bancos? Alguns segmentos específicos de seus clientes capazes de realizar investimentos? Isto em nenhum momento fica bem estabelecido, em que pese o próprio título da pesquisa sugerir que o índice serve para medir as condições financeiras “do brasileiro”. Portanto, uma média da população brasileira total. Contudo, a pesquisa menciona, tão-somente, que os entrevistados são pessoas com mais de 18 anos “que mantém relacionamento com o sistema financeiro nacional”. Sabe-se, porém, que existem milhões de brasileiros e brasileiras que não possuem conta bancária. Estariam estas pessoas excluídas do universo da pesquisa?

 

2. A base financeira dos entrevistados é citada na metodologia e mensurada no questionário, porém, não há qualquer cruzamento de resultados.  O cruzamento observado nos resultados divulgados ocorre entre situação financeiraelocalização geográfica, gênero e idade. Desta forma, não se extraiu das respostas ao questionário o índice de saúde financeira por faixa de renda familiar. Para um índice que trata da “saúde financeira” do brasileiro isto é uma lacuna grave na divulgação pública.

 

3. Quanto aos protocolos internacionais que serviram de referência para a construção do questionário- Financial Well-Being Scale (CFPB); Skill Scale (CFPB); Financial Health Score (CFSi); e Financial Capability Score (University of Wisconsin) – e, por conseguinte, do índice, pode-se dizer que estes protocolos buscam avaliar a capacidade ou as habilidades dos respondentes em gerirem suas finanças em prol da geração de seu bem-estar financeiro. Portanto, eles não definem um índice que avalia a situação (ou “saúde”) financeira, em si, da população. Tão pouco, eles visam generalizar resultados ou orientações. Os pesquisadores do CFPB, por exemplo, desenvolveram o questionário e a forma de pontuá-lo, com o intuito de fornecer uma ferramenta que ajude os respondentes a medirem seu bem-estar financeiro atual, apontando o quanto sua situação atual fornecerá segurança financeira e liberdade de escolha, hoje e no futuro. Trata-se, portanto, de avaliações e apontamentos individuais.

 

4. Cabe também a seguinte pergunta: o uso do método da Escala Likert - que é bastante utilizada, por exemplo, por equipes de marketing em pesquisas de coleta de opinião –seria o mais adequado para captar a realidade de tema tão sensível à vida da população, como é o caso da situação financeira individual e familiar? Veja-se, por exemplo, um comentário geral sobre a Escala Likert:

 

Existem vantagens no uso da escala (...). Os aspectos inconvenientes são a dificuldade da empresa em trabalhar com itens neutros, como “indiferentes”. Neste caso, a resposta oferece poucas informações aplicáveis de maneira prática. Além disso, os indivíduos que preenchem o questionário possuem uma tendência em facilmente concordar com as declarações, sem, muitas vezes, analisar os seus sentimentos em relação à questão. Pode existir uma espécie de automatismo e impulsividade da resposta (fonte: mindminers.com/blog/entenda-o-que-e-escala-likert).

 

Assim, tome-se, por exemplo, uma das afirmações que constam do questionário: “Eu sei gerenciar meus gastos”. Evidentemente, a afirmação, como está colocada, mexe com a sensibilidade e a vaidade do (a) respondente. É muito difícil para qualquer pessoa admitir que gerencie mal os seus gastos.

 

5. Uma pessoa de baixa renda pode, pelo indicador, ser considerada incapaz de cumprir suas obrigações; incapaz de tomar decisões; ter pouca disciplina e autocontrole; sentir-se insegura quanto ao futuro; e não conseguir fazer escolhas que a permitam aproveitar a vida. Portanto, esta pessoa provavelmente terá uma baixíssima pontuação no seu Índice de Saúde Financeira. No entanto, cabe aqui uma questão: isto garante que esta pessoa seja uma má gestora de suas finanças pessoais? A educação financeira, neste caso, resolverá o problema na raiz, que reside no baixo patamar da renda da maioria dos brasileiros?

 

6. A pesquisa não faz alusão ao contexto social do país, para mensurar a “saúde financeira” do brasileiro. Deve-se considerar que parcela importante da população depende de projetos sociais para sobreviver. Por exemplo, o Programa Bolsa Família, o que implica receber uma renda abaixo do salário mínimo. Mesmo quem vive com salário mínimo possui pouca margem para gastos além daqueles estritamente necessários, como alimentação, medicamentos, roupas, e, em muitos casos, pagamento de aluguel. Além disso, há um número expressivo de pessoas desempregadas, ou vivendo na informalidade. Some-se a isso, a precarização do trabalho (com impacto na renda), sobretudo desde a Reforma Trabalhista em 2017.

Esta população faz parte do conjunto de entrevistados? Tal informação seria importante para que pudéssemos, a partir de cruzamento de dados, melhor avaliar o resultado da pesquisa. Podemos simplesmente imputar à população, que gasta mais do recebe, uma má gestão ou falta de habilidade financeira ou é necessário fazer uma relação disto com a má distribuição de renda, com os baixos salários, com o desemprego, com a precarização do trabalho?

Nesse sentido, a pesquisa estabelece uma “simplificação” na discussão sobre a “saúde financeira” dos brasileiros, atribuindo o problema à má gestão (individual) do dinheiro sem levar em consideração a questão da má distribuição de renda.

 

7. Não há afirmações mais específicas sobre endividamento da pessoa: Nem sobre as motivações que levaram ao endividamento, ou mesmo quanto aos meios do endividamento, dentre eles, o cheque especial, o crédito consignado, o empréstimo pessoal ou junto a uma financeira; a agiotagem, entre outros.

 

8. Algumas perguntas feitas pelo questionário não aparecem nos resultados públicos da pesquisa. Entre elas, por exemplo: “Qual dos produtos e serviços que eu vou ler agora você tem? Conta corrente; financiamento; títulos; previdência etc”.

 

9. Em função dos problemas metodológicos já citados, os resultados percentuais encontradosparecem não refletir a realidade da “saúde financeira dos brasileiros” como um todo. A média de 57 (numa pontuação que varia de zero a 100) para a população brasileira parece excessivamente alta em face do que vivenciamos empiricamente e de outros indicadores disponíveis (como índice de pobreza absoluta, inadimplência, entre outros).

10. O próprio papel das instituições financeiras, como promotoras do superendividamento, não é colocado em nenhuma das afirmações do questionário. Sabemos que as instituições financeiras não são passivas no processo.

 

11.  Entre os objetivos não explicitados da Febraban com a pesquisa estão:

 

a)    Melhorar a imagem dos bancos.

 

b)    Atender parcialmente à Lei nº 14.181/2021, conhecida como “Lei do Superendividamento”, que buscou aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e “dispõe sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento”. A Lei, entre outras medidas, promove a inclusão, no Código de Defesa ao Consumidor (CDC), do “fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores” (...); a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor (...)”; e osnúcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento”. A Lei estabelece que as empresas que fornecem o crédito passam a ser corresponsáveis pela concessão do crédito.

 

c)    Tirar o foco sobre os elevados spreads bancários e jogar o problema na gestão dos próprios indivíduos e famílias.

 

d)    Mostrar que a saúde financeira dos brasileiros é um problema, mas não tão grande; por conseguinte, há margens para aumentar o crédito individual e familiar(“I- SFB é bom; está em bom patamar”).

 

e)    Estimular a previdência complementar.

 

f)     Reforçar, como “senso comum”, que o problema financeiro do brasileiro não está em sua “baixa renda” (baixos salários, falta de direitos), mas na falta de habilidade de gerir o que ganha.

 

12. Registre-se que, em que pese o sabido impacto da pandemia do coronavírus na vida financeira das famílias, a crise sanitária não é mencionada hora alguma na pesquisa, o que gera grande surpresa ao ler o questionário e os resultados divulgados.

 

Cumpre, ao final, reafirmar a importancia de realização de pesquisas a respeito de assuntos importantes da vida dos indivíduos e famílias, como é o caso de sua saúde financeira. De fato, estes indicadores podem contribuir como orientadores de políticas públicas e privadas, e de programas educacionais que orientem a boa gestão individual e familiar dos recursos financeiros, a formação de uma cultura de poupança e o estímulo a investimentos financeiros. No entanto, é essencial que os interesses das entidades promotoras de pesquisas não se misturem com o rigor necessário na metodologia das mesmas pesquisas.

 

Referências Bibliográficas

 

CONCEIÇÃO, Jefferson José da; MACHADO, Vivian; YAMAUCHI, Gisele. Comentários à pesquisa Febraban de tecnologia bancária. In: CONCEIÇÃO, Jefferson José da; NORONHA, Cláudio Pereira. A era digital e o trabalho bancário: o papel do sistema financeiro e subsídios à ação sindical e às políticas públicas. Santo André: Coopacesso, 2020. 465 p.

 

FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS (FEBRABAN). Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB). Disponível em: https://indice.febraban.org.br/ . Acesso em: 4 ago. 2021

 

FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS (FEBRABAN). Manual de uso da metodologia do I-SFB.  Disponível em: https://indice.febraban.org.br/ . Acesso em: 4 ago. 2021

 

FERNANDES, Daniel; LYNCH JR, John G.; NETEMEYER, Richard G. Financial literacy, financial education, and downstream financial behaviors. Management Science, v. 60, n. 8, p. 1861-1883, 2014.

 

HASTINGS, Justine S.; MADRIAN, Brigitte C.; SKIMMYHORN, William L. Financial literacy, financial education, and economic outcomes. Annu. Rev. Econ., v. 5, n. 1, p. 347-373, 2013.

https://pefmbddiag.blob.core.windows.net/cdn/downloads/I-SFB_Manual_Metodologico.pdf. Acesso em: 4 ago. 2021

 

KAISER, Tim; MENKHOFF, Lukas. Does financial education impact financial literacy and financial behavior, and if so, when?. The World Bank Economic Review, v. 31, n. 3, p. 611-630, 2017.

 

Likert. O Número de Itens e a Disposição Influenciam nos Resultados?.Artigo apresentado no XXX11 Encontro da ANPAD (Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Administração). Rio de Janeiro-RJ: 6 a 10 de setembro de 2008.

 

LUCCI, Cintia Retzet al. A influência da educação financeira nas decisões de consumo e investimento dos indivíduos. Seminário em Administração, v. 9, 2006.

 

LUSARDI, Annamaria. Saving and the effectiveness of financial education.2003.

 

MATTA, Rodrigo Octávio Beton. Oferta e demanda de informação financeira pessoal: o Programa de Educação Financeira do Banco Central do Brasil e os universitários do Distrito Federal. 2007

 

SAVOIA, José Roberto Ferreira; SAITO, André Taue; SANTANA, Flávia de Angelis. Paradigmas da educação financeira no Brasil. Revista de Administração pública, v. 41, p. 1121-1141, 2007.

 

VIEIRA, Kelmara M.; DALMORO, Marlon. Dilemas na Construção de Escalas Tipo Likert: o Número de Itens e a Disposição Influenciam nos Resultados? Artigo apresentado no XXX11 Encontro da ANPAD (Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Adminitração). Rio de Janeiro-RJ: 6 a 10 de setembro de 2008.

 

VIEIRA, Saulo Fabiano Amancio; BATAGLIA, Regiane Tardiolle Manfre; SEREIA, Vanderlei José. Educação financeira e decisões de consumo, investimento e poupança: uma análise dos alunos de uma universidade pública do norte do Paraná. Revista de Administração Unimep, v. 9, n. 3, p. 61-86, 2011

 

WALSTAD, William B.; REBECK, Ken; MACDONALD, Richard A.The effects of financial education on the financial knowledge of high school students. JournalofconsumerAffairs, v. 44, n. 2, p. 336-357, 2010.

 

 

ANEXO

Nos últimos 12 meses, qual frase melhor descreve a comparação entre a renda total e os gastos na sua casa?

 

 

Os gastos foram muito maiores que a renda

Os gastos foram um pouco maiores que a renda

Os gastos foram mais ou menos iguais a renda

Os gastos foram um pouco menor que a renda

Os gastos foram muito menores que a renda

Nos últimos 12 meses, qual frase melhor descreve a comparação entre a renda total e os gastos na sua casa?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Febraban. I-SFB.

 

O QUANTO ESTA FRASE DESCREVE VOCÊ OU SUA SITUAÇÃO?

NADA

POUCO

MAIS OU MENOS

MUITO

TOTALMENTE

O quanto esta frase descreve você ou sua situação?

Nada

Pouco

Mais ou menos

Muito

Totalmente

Preocupações com as despesas e compromissos financeiros são motivo de estresse na minha casa.

 

 

 

 

 

Por causa dos compromissos financeiros assumidos, o padrão de vida da minha casa foi bastante reduzido.

 

 

 

 

 

Estou apertado (a) financeiramente.

 

 

 

 

 

Eu sei tomar decisões financeiras complicadas.

 

 

 

 

 

Eu sou capaz de reconhecer um bom investimento.

 

 

 

 

 

Eu sei me informar para tomar decisões financeiras.

 

 

 

 

 

Eu sei como me controlar para não gastar muito.

 

 

 

 

 

Eu sei como me obrigar a poupar.

 

 

 

 

 

Eu sei como me obrigar a cumprir metas financeiras.

 

 

 

 

 

Estou garantindo meu futuro financeiro.

 

 

 

 

 

O jeito que eu cuido do meu dinheiro me permite aproveitar a vida

 

 

 

 

 

Fonte: Febraban. I-SFB.


 

 

HOJE QUAIS DOS PRODUTOS E SERVIÇOS QUE EU VOU LER AGORA VOCÊ (OU ALGUÉM NA SUA CASA) TEM? MARQUE AS OPÇÕES ABAIXO:

o       Conta Corrente

o       Previdência privada

o       Cartão de crédito

o       Financiamento de veículo (carro, moto, caminhão etc)

o       Seguro de casa

o       Título de capitalização

o       Poupança

o       Seguro saúde / convenio

o       Cartão de débito

o       Financiamento estudantil

o       Financiamento de imóvel

o       Consórcio

o       Investimento (ações, fundos ou títulos)

o       Seguro de carro

o       Agora conte o número de opções marcadas (                       )

 

Fonte: Febraban. I-SFB.

 

 

 

NENHUM PRODUTO

1 OU 2 PRODUTOS

ENTRE 3 E 5 PRODUTOS

ENTRE 6 E 8 PRODUTOS

9 PRODUTOS

Quantos produtos você assinalou na pergunta anterior?

 

o       

 

o       

 

o       

 

o       

 

o       

Fonte: Febraban. I-SFB.

 

 

ATÉ R$ 1.045

DE R$ 1.046 ATÉ R$ 2.090

DE R$ 2.091 ATÉ R$ 3.135

DE R$ 3.136 ATÉ R$ 5.225

De R$ 5.226 ATÉ R$ 10.450

DE R$ 10.451 ATÉ R$ 20.500

ACIMA DE R$ 20.500

Por favor, poderia me dizer qual é, aproximadamente, a RENDA TOTAL por mês incluindo todos os membros de sua família?

 

 

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Fonte: Febraban. I-SFB.

 

 

ANALFABETO / FUNDAMENTAL 1 INCOMPLETO

FUND.1 COMPLETO FUNDAMENTAL 2 INCOMPLETO

MÉDIO COMPLETO / SUPERIOR INCOMPLETO

SUPERIOR COMPLETO

PÓS GRADUAÇÃO COMPLETA

Qual éo seu grau de instrução?

 

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Fonte: Febraban. I-SFB.

 

 

 

 



[1]Ana Carolina Tosetti Davanço. Mestranda em Administração pela USCS. Especialista em Gestão Pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Possui Graduação em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

[2]Claudio Pereira Noronha. Graduação em Administração de Empresas (Centro Universitário Fundação Santo André); Pós-graduação (Lato sensu) em Globalização e Cultura (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo); mestrado e doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de SP; assessor do Sindicato dos Bancários do ABC.

[3]Jefferson José da Conceição. Coordenador do Observatório CONJUSCS. Graduado em Economia pela UFRJ; Mestre em Administração pelo IMES; Doutor em Sociologia pela USP. Assessor da Pró-Reitoria de Graduação e Professor da USCS. Blog: www.blogdojeff.com.br. Autor do livro "Entre a mão invisível e o Leviatã: contribuições heterodoxas à economia brasileira". Editora Didakt, 2019 (407 págs.). Disponível em www.estantevirtual.com.br.

 

[4]Vívian Machado. Economista. Mestre em Economia Política pela PUC-SP. Atualmente, técnica do DIEESE, assessorando a Subseção da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (CONTRAF-CUT) e colaboradora do Observatório CONJUSCS.


* Artigo originalmente publicado na 18ª Carta de Conjuntura da USCS, publicada em agosto de 2021, e disponível na íntegra em https://www.uscs.edu.br/noticias/cartasconjuscs