Jefferson
José da Conceição
Este artigo destaca a
falácia do argumento que diz que o “mercado” é sempre mais eficiente do que a
ação estatal. O mito da eficiência do
mercado – sim, trata-se de um mito, uma falácia, um argumento logicamente
inconsistente – vai e volta de tempos em tempos. No Brasil, neste momento, está na moda acreditar
e reproduzir o mito.
Está na moda, em parte,
porque o argumento vai ao encontro do processo de “endireitização” da sociedade
brasileira. Como mostrei em artigo anterior, intitulado “A Direita ‘saiu do
armário’”, um dos elementos centrais que, no campo econômico, caracterizam o
pensamento da Direita é a defesa do capitalismo, da propriedade privada e da
livre iniciativa. Em síntese, a defesa do mercado contra a ação do Estado.
De fato, o pensamento
majoritário da Direita prega o Estado Mínimo. De acordo com esta visão, o Governo
deveria interferir o menos possível na atividade econômica. A presença do
Estado geraria “ineficiências” de toda ordem. Não caberia ao Estado produzir
bens e serviços. O Governo deveria restringir também seu desejo de regular e
induzir os agentes econômicos.
Cabe ter claro, entretanto,
que, em relação ao tamanho do Estado e sua intervenção na economia, há um amplo
espectro de posicionamentos na Direita: desde aqueles que fendem o Estado
Mínimo até aqueles que apregoam um Estado Forte (caso da Extrema Direita).
No caso brasileiro atual, em
tempos de suposta demonização da sociedade contra a corrupção no interior do
Estado Brasileiro, voltam à tona as propostas e políticas econômicas e sociais
que põem em xeque a eficiência de programas conduzidos pelo Governo como a
Política de Valorização do Salário Mínimo, o Bolsa Família, o Prouni, o Minha
Casa minha Vida. As críticas liberais também miram outras intervenções e dirigismos:
o Sistema Único de Saúde (SUS); a Política Industrial; o monopólio da Petrobrás
na área petrolífera; o financiamento dirigido realizado por entidades como o
BNDES, entre outros.
Liberalismo
como ideologia dominante
Em suas origens, o
Liberalismo representou uma doutrina revolucionária às ideias dominantes
prevalentes na Idade Média. Mas foi durante a Revolução Francesa que as ideias
liberais explodiram com força, como crítica à velha ordem monárquica.
Do século XVIII aos dias de
hoje o liberalismo constituiu-se no pensamento econômico dominante entre os
acadêmicos e policy makers da maior
parte dos países desenvolvidos. Ele também ganhou muitos adeptos nos países
subdesenvolvidos.
É verdade que existem ondas
de maior ou menor hegemonia deste tipo de raciocínio sobre as ideias
prevalentes em determinado período. Por exemplo, entre a Segunda Guerra Mundial
e a década de 1970, várias teorias e práticas econômicas que são críticas ao
liberalismo – como o Keynesianismo, o "Welfare
State" e o tripartismo - foram ensinadas e difundidas em todo o mundo
capitalista. Por outro lado, entre as décadas de 1980 e 1990, vigoraram com
plenitude as ideias "neoliberais". No limite, estas ideias apenas dão
uma nova roupagem mais moderna ao pensamento liberal.
A lógica central do
pensamento liberal repousa no credo mítico dos benefícios proporcionados pelo
livre funcionamento do ‘mercado’. Adota-se a premissa de que os mecanismos
automáticos gerados pelas forças do mercado são os mais apropriados, em
qualquer tempo histórico, para organizar e conduzir as nações ao
desenvolvimento econômico e social, isto é, à sua prosperidade, harmonia e
equilíbrio. O mercado é visto, pois, como um demiurgo sobre todos os indivíduos
e instituições.
Karl
Polanyi e “a Grande Transformação”: dura crítica ao liberalismo
Karl POLANYI, em seu famoso
livro "A grande transformação", escrito na década de 1940, foi um dos
críticos mais fervorosos a este tipo de pensamento. Entretanto, este autor
começa por reconhecer a grande influência exercida pelo liberalismo:
"O
liberalismo econômico foi o princípio organizador de uma sociedade engajada na
criação de um sistema de mercado. Nascido como mera propensão em favor de
métodos não burocráticos, ele evoluiu para uma fé verdadeira na salvação
secular do homem através de um mercado autoregulável".
O laissez-faire – expressão
francesa que sintetiza uma economia que funciona livremente sem restrição ou
regulamentação estatal de qualquer espécie - é o eixo em torno do qual gira a
filosofia social e econômica dos liberais. Na visão liberal, o laissez-faire
decorre do desenvolvimento natural e supostamente lógico da humanidade rumo à
troca de mercadorias e à distribuição do trabalho entre os homens, como sistema
que se opõe a uma economia de subsistência e de isolamento social. Assim, a
visão liberal naturaliza o mercado, como algo que nasceu historicamente com a
própria sociedade.
Entretanto, de acordo com os
liberais, o laissez-faire não é apenas uma decorrência natural da evolução
humana. Ele também é o estágio definitivo, final, mais evoluído desta evolução.
Isto porque, é por meio de uma economia aberta e sem restrições que os países
podem atingir a melhor e mais eficiente alocação de seus recursos econômicos. É
o livre mercado que permitiria o pleno emprego do capital, da terra e do
trabalho e, por conseguinte, o equilíbrio harmônico no uso dos fatores de
produção.
São as seguintes as
premissas básicas sobre as quais se assenta a crença de que o mercado é a
melhor forma de organização econômica e social:
a) O egoísmo é um sentimento
inerente ao ser humano, que leva à competição e à rivalidade entre os
indivíduos;
b) A competição egoísta por
maiores lucros não é apenas benéfica para os indivíduos (que dão vazão ao seu
egoísmo), mas para toda a sociedade, pois resultaria sempre na plena utilização
de todos os recursos econômicos dessa sociedade (força de trabalho, maquinário
etc);
c) É a competição no mercado
que faz com que haja a melhoria da qualidade dos produtos e a redução constante
dos custos para produzi-los, por meio do incremento da inovação e da
produtividade.
Consoante com esta visão, os
homens (principalmente os homens de negócios, os empresários) deveriam dispor
da mais ampla liberdade para por em ação os seus impulsos egoístas por maiores
ganhos (lucros). É este instinto que faz com que eles busquem concorrer entre
si para maximizar seus ganhos. A concorrência, por sua vez, leva os empresários
a procurarem baixar seus preços, por meio da redução dos custos de produção. É
a competição também que promove a melhoria da qualidade dos produtos. Por fim,
ela acaba por estimular a permanente inovação e produtividade de todo o
processo produtivo.
O "pai" do
pensamento econômico liberal é Adam SMITH, autor de "A Riqueza das Nações".
Smith, cuja obra é do século XVIII, resume com clareza (mas não deixa de ser
surpreendente também sua franqueza) as vantagens de uma sociedade organizada em
torno do livre mercado:
"Não
é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro, do padeiro que esperamos nosso
jantar, mas de sua preocupação com o seu próprio interesse".
E complementa Smith:
"Todo
indivíduo... esforça-se continuamente para encontrar o emprego mais vantajoso
para o capital, seja ele qual for, que estiver sob o seu comando".
Vale dizer: é na
concorrência egoísta entre os produtores dos mais variados setores, pelo maior
lucro possível para cada um, que a sociedade extrairia os maiores benefícios
para si, em termos de qualidade, preços e quantidade oferecidas. Neste modelo
de equilíbrio não haveria desemprego e nenhum desperdício dos fatores de
produção.
Decorre deste tipo de
pensamento a rejeição ao Estado e à regulação social como instrumentos que
contribuem para o alcance da melhoria do bem estar econômico e social. Segundo
a ideologia liberal, as instituições estatais são ineficazes, ineficientes e
propensas a gerar corrupção.
Nesta ideologia, a
interferência do Estado é tolerada apenas em áreas nas quais a iniciativa
privada, por motivos diversos (como a possibilidade de sua autodestruição), tem
dificuldades para atuar, tais como a defesa externa, a Justiça (que teria a
função, entre outras, de proteger a propriedade privada e a garantia do
cumprimento dos contratos) e a preservação da ordem interna por meio do poder
de coerção policial.
Karl POLANYI aponta que esta
crença liberal no equilíbrio harmônico que deriva do livre funcionamento do
mercado é fruto da própria transformação histórica da sociedade, desde o século
XVII e XVIII, rumo a uma economia mercantilizada, na qual toda a sociedade foi
gradativamente reduzida ao mercado. Para ele, a grande transformação histórica
do trabalho, da moeda e da terra em mercadorias, ocorrida ao longo de vários
séculos, é vista como um trágico desastre pela qual enveredou a civilização
humana. A transformação da sociedade em mercado liquidou todas as redes de
proteção geradas socialmente para impedir sua autodestruição na forma da
desigualdade, pobreza e violência. O resultado desta transformação das
instituições sociais em "mercadorias" foi a gradativa erosão social.
Deriva das ideias de
POLANYI, que somente pode existir o "mercado" se ele estiver ancorado
em regras e regulações estabelecidas pela própria sociedade. Ou seja, o mercado
não deve ser visto como um fim em si mesmo. Ele só tem sentido se estiver
previamente regulado e controlado por decisões tomadas pelos próprios homens.
Outros exemplos de autores críticos ao
liberalismo
Robert REICH, em seu artigo
intitulado "Sobre mercados e mitos", também faz uma dura crítica às
ideias liberais:
"A
ideia de um mercado livre - de alguma maneira à margem da lei - é uma fantasia.
O mercado não foi criado por vontade divina. É uma criação humana, é a
totalidade, em constante transformação, do conjunto de critérios sobre os
direitos e as responsabilidades individuais. O que é meu? O que é seu? Como
definimos e combatemos as ações que ameaçam esses critérios: o furto, a força,
a fraude ou a negligência? O que devemos e o que não devemos comercializar
(drogas, sexo, votos, bebês)? Como devemos fazer para cumprir essas decisões e
que apenas devem ser aplicadas às transgressões?
À
medida que uma cultura acumula respostas a essas perguntas, cria uma versão de
mercado. Essas respostas não se encontram na lógica ou na análise somente.
Diferentes culturas em diversas épocas têm respondido de maneiras distintas. As
respostas dependem dos valores assumidos por uma sociedade: a importância dada
à solidariedade, à prosperidade, à tradição, à religiosidade etc.
Nas
sociedades modernas, o governo é considerado o agente principal, pois define e
faz cumprir as normas que estruturam o mercado. Os juízes e os legisladores,
assim como os executivos e os administradores do governo, alteram e adaptam
interminavelmente as regras do jogo; quase sempre de forma tácita, porém sempre
sob a vigilância e, às vezes, sob a mão de interesses afetados pelos resultados
de determinadas decisões".
O economista coreano Há-Joon
CHANG, em seu estudo "kicking away
the ladder" (em tradução livre: "Chutando para longe a
escada"), também faz uma forte crítica ao ideário liberal. A contribuição
deste autor está em que sua crítica se dá por meio da recuperação da própria
trajetória dos países considerados desenvolvidos e que hoje são defensores dos
princípios liberais.
CHANG elaborou profunda
crítica às ideias liberais que tiveram ampla difusão internacional, a partir do
chamado Consenso de Washington no final dos anos 80. A partir de uma
perspectiva histórica, Chang sustenta ser uma falácia a ideia (néo) liberal,
defendida por pesquisadores e instituições dos países desenvolvidos, com grande
adesão entre os países não desenvolvidos, de que o livre mercado é melhor
caminho para os países atrasados alcançarem o desenvolvimento.
Chang mostra que os países
atualmente desenvolvidos que foram por ele estudados (Inglaterra, Estados
Unidos, Alemanha, França, Suécia, Bélgica, Holanda, Suíça, Japão, Coréia,
Taiwan) se utilizaram de forte intervenção do Estado para proteger e promover
sua indústria infante em seus processos de "catching
up" (elevação rumo ao desenvolvimento).
Em sua pesquisa, Chang
diagnosticou que políticas e instrumentos adotados pelo Estado foram
fundamentais à industrialização desses países, tais como: elevação de tarifas
de importação; restrições quantitativas (quotas) às importações; restrições
voluntárias às exportações de países concorrentes; redução de impostos sobre
exportação; subsídios à exportação; impostos anti dumping; importação de trabalhadores qualificados; investimento
estatal em pesquisa e tecnologia; construção de infraestrutura; reforma
educacional; processos de cooperação envolvendo setor público e privado.
Para Chang, contudo, esses
países hoje avançados após terem atingido o estágio de países desenvolvidos,
procuram "chutar para longe a escada", por meio da qual os países
atrasados (ou em desenvolvimento) poderiam atingir o mesmo estágio. Assim, os
países desenvolvidos, por intermédio da difusão de teorias e políticas de
órgãos multilaterais e de fomento, que os países em desenvolvimento adotem
medidas econômicas liberalizantes – diferentemente do que fizeram eles mesmos
(países atualmente desenvolvidos) no passado.
Democracia
e crise econômica versus livre mercado
Acrescente-se que o mito da
eficiência do livre mercado passou a conflitar com a própria evolução da
democracia ao longo do século XX, especialmente após as duas guerras mundiais.
Na Europa e nos EUA, as elites aceitaram, de certa forma, a construção de um
Estado de bem-estar social, de forma a reduzir a pobreza e aumentar a igualdade
entre os cidadãos.
A grande crise econômica
vivida pelo capitalismo no início da década de 1930 também contribuiu bastante
para desmistificar o mito da "eficiência do livre mercado". Os
governos adotaram no início da crise praticamente todo o receituário liberal
para combater a crise: abertura econômica, equilíbrio das contas públicas,
livre funcionamento do mercado de trabalho, combate aos monopólios, como é o
caso dos sindicatos de trabalhadores, etc. Apesar disso, o desemprego e a crise
somente avançaram no período. Somente quando o Estado passou a atuar mais
decisivamente, por meio do aumento do investimento público, é que a crise da
produção e do emprego foi solucionada.
Por conseguinte, hoje, o
atual liberalismo convive com vários tipos de correntes críticas ao seu
pensamento. Estas correntes procuram desmistificar a ideia da maximização do
bem estar econômico e social por via do livre mercado. Em vários destes
trabalhos que se opõem ás ideias do liberalismo, procura-se questionar a
validade das premissas liberais. Assim, por exemplo, a premissa da existência
de um mercado concorrencial formado por pequenos produtores independentes é
apontada como uma premissa falsa, uma falácia.
Estes trabalhos mostram que
hoje praticamente todos os setores econômicos são liderados e controlados por
grandes grupos econômicos oligopolistas, que na maioria das vezes atuam na
forma de cartéis, controlando preços e quantidades ofertadas, impedindo
qualquer livre funcionamento das leis da oferta e da procura.
Outra premissa que gera
bastante polêmica é a de que os homens são naturalmente egoístas. Para muitos
autores o egoísmo e o resultado de determinadas circunstâncias históricas e
sociais. Portanto, se alteradas estas circunstâncias os homens poderão deixar
de ser egoístas.
Em uma sociedade que
efetivamente prega pelo avanço da democracia e justiça social, combinadas à
eficiência econômica, há certa concordância de que é fundamental o
estabelecimento de mecanismos de regulação do mercado, desde o processo de
organização da produção, da distribuição, circulação e do consumo.
Registro, ao final, que
parte desse texto foi extraído, com os devidos ajustes, de outro artigo meu,
desta vez em parceria com Maria da Consolação Vegi, intitulado “Livre Mercado
versus responsabilidade social: a controvérsia à luz da Economia e do Direito”, publicado
na. Revista JusNavigandi, n 1718
em 15/3/ 2008.
Jefferson
José da Conceição é Prof. Dr. da USCS. É Diretor Técnico da Agência São Paulo
de Desenvolvimento - Adesampa. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico,
Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre 2009 e julho de 2015. Foi
Diretor Superintendente do SBCPrev entre agosto de 2015 e fevereiro de 2016.
Artigo publicado no site www.abcdmaior.com.br, na coluna blogs, em 30/5/2016.