Resumo: O texto parte de uma breve recuperação do sentido histórico do
conceito de “trabalho decente”, identificando na queda do modelo de produção
fordista do pós-guerra e na perda de hegemonia das políticas keynesianas, e
suas substituições, respectivamente, por um novo modelo de produção e pelas
políticas neoliberais, das quais as formas de trabalho desprotegidas e precarizadas
são parte constitutiva, um marco neste debate.
Em uma segunda parte, o texto sugere linhas concretas de ações para o
enfrentamento do desafio de implementar o trabalho decente no Brasil, conforme
estabelecem as normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Destaca-se
ao final o ineditismo da recente assinatura do Decreto Municipal de São
Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, em prol do trabalho decente nos
contratos envolvendo o Poder Público e as empresas ganhadoras de licitações.
Palavras-chave: trabalho, regulamentação do trabalho, sindicalismo.
Abstract: The text
begins with a brief recovery of the historical sense of the concept of “decent
work”, identifying in the fall of the Fordist production model and the loss of
hegemony of Keynesian economic policy and their replacement, respectively, by a
new model of production and neo-liberal policies - in which unprotected and
precarious labor relations are part constitutive – a milestone in this debate. In a second part, it suggests concrete line
of action for confronting the challenge in order to implement decent work in
Brazil, as established by the International Labour Organization (ILO)
standards. In the end, it is highlighted the pioneering initiative of the
recent signing of the Decree by the Municipality of São Bernardo do Campo,
Great São Paulo, in support of decent work in contracts involving the
Government and the winning companies from public biddings.
Keywords: labor, labor
regulation, unions.
1. Introdução
Este artigo trata do conceito de trabalho
decente, sua referência histórica e possíveis caminhos para sua implementação
no Brasil. A Agenda Nacional do Trabalho Decente, proposta em âmbito mundial
pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi objeto de um Memorando de
Entendimento do Governo Federal com a entidade em 2003 e foi lançada
efetivamente em 2006, cabendo ao Ministério do Trabalho e Emprego a sua
implementação[3]. Desde então, ocorreram
adesões de alguns entes federados. Destacamos o Estado da Bahia, que lançou a
Agenda Bahia de Trabalho Decente em 06/12/2007 e mantém ativo o Portal do
Trabalho Decente (http://www2.setre.ba.gov.br/trabalhodecente/index.asp). Trata-se de uma iniciativa da maior
importância, que dá exemplo aos demais estados brasileiros, sendo de esperar
que ocorram novas adesões estaduais. Por sua vez, no Município de São Bernardo
do Campo (SP), a Prefeitura editou um Decreto Municipal de Incentivo ao
Trabalho Decente, em 09 de abril de 2010. Esta iniciativa reveste importância
pelo seu pioneirismo no âmbito municipal. Ela se antecipa, de forma ativa, à atividade
do Grupo de Trabalho do Grande ABC para elaboração da Agenda Regional do
Trabalho Decente, criado em março de 2009, o qual instalou seu Comitê Gestor em
fevereiro de 2010 e realizou uma Conferência Regional de Trabalho Decente em
maio de 2010.
O artigo a seguir se compõe de três seções
distintas. A primeira apresenta sinteticamente as diretrizes da OIT sobre o
conteúdo do trabalho decente, em âmbito mundial e no quadro da América Latina.
A segunda historia o conceito e as práticas do trabalho do final da IIa
Guerra Mundial à atualidade. Verifica-se aí um processo inicial de afirmação de
direitos e conquistas sociais e trabalhistas nos países desenvolvidos e as
tentativas de ampliá-los para a América Latina, seguido de uma contra-ofensiva
pela redução e eliminação desses direitos nas últimas três décadas. Tal é o
contexto histórico que, na interpretação dos autores, justificam e tornam
premente a iniciativa da OIT pelo trabalho decente nos últimos onze anos. A
terceira seção se alterna com o caráter descritivo-interpretativo da segunda e
adota um enfoque propositivo. Nela, procuram-se apontar eixos e ações que
favoreçam o avanço das agendas pelo trabalho decente em todo o território
nacional.
2. A OIT e o conceito de trabalho decente
Desde 1999, a OIT
propugna pela adoção do trabalho decente em escala mundial[4].
Sucessivas conferências e fóruns internacionais passaram a se comprometer com Agendas
pelo Trabalho Decente. Esta categoria se compõe de quatro estratégias
fundamentais:
1) promover e
cumprir as normas e os princípios e direitos fundamentais no trabalho;
2) criar maiores oportunidades para mulheres e homens para
que disponham de remuneração e empregos decentes;
3) realçar a abrangência e a eficácia da proteção social
para todos e;
4) fortalecer o tripartismo e o diálogo social.
Dirigindo-se à
América Latina em 2006, o então diretor-geral da OIT propôs uma Agenda Latino-Americana
pelo Trabalho Decente, que deveria contemplar cinco desafios relacionados, ao
mesmo tempo, à categoria geral, acima definida, e às características
específicas das sociedades e dos mercados de trabalho latino-americanos. Esses
desafios são:
a) que o crescimento econômico seja promotor do emprego
para todos;
b) que os direitos do trabalho sejam cumpridos e
efetivamente aplicados;
c) que a democracia seja fortalecida;
d) que sejam adotados novos mecanismos de proteção
adequados à realidade atual;
e) que, por essa via, a exclusão social seja combatida.
Cada um dos
aspectos mencionados requer uma discussão concreta. No entanto, a própria
circunstância de a OIT se ver na contingência de lançar essa proposta merece
ser explicada. E são fatores históricos, com ênfase nos planos político, social
e econômico, que permitem compreender a emergência desse eixo de atividade da
organização na última década.
3. O Contexto
Histórico do Trabalho Decente
3.1 Guerra
Fria, keynesianismo, fordismo e mercado de trabalho
O conceito de trabalho decente é atual, mas
não é uma nova criação. Ao contrário, ele resgata aspectos centrais do que foi
o período mais avançado da história do capitalismo, em termos de direitos
sociais. É no quadro do Estado de Bem-Estar Social (welfare state) que
se encontram os paradigmas hoje perseguidos pela campanha em defesa do trabalho
decente. Por suas virtudes e limitações, esse paradigma busca hoje uma
universalização que não possuiu naquele período. As práticas e instituições que
cristalizaram o avanço social em alguns países são na atualidade o padrão
pretendido para o conjunto do planeta, ainda que os ritmos de sua conquista e
implantação (ou resgate) e suas especificidades sejam distintos entre os diversos
países e continentes.
As três décadas
que se seguiram ao término da IIa Guerra Mundial (1939-1945)
foram marcadas por diversos processos transformadores. De um lado, a Guerra
Fria liderada pelos EUA e pela URSS incorporou, ao lado do imaginário nuclear e
de inúmeros conflitos localizados, uma efetiva corrida armamentista,
responsável por boa parte da inovação tecnológica do período e mesmo das
décadas subseqüentes[5]. Além
disso, conforme previu corretamente o Memorando Nitze-Keyserling de 1948[6], os
gastos públicos com armamentos exerciam um papel de reforço à demanda agregada
nos EUA, ao contrário da URSS. Nesta, a economia estatizada não experimentava a
necessidade de adequar a demanda efetiva à oferta agregada, sob condições de
mercado e, em compensação, tinha nos gastos armamentistas um monumental desvio
de recursos necessários à melhoria da qualidade de vida da sociedade. Nos
países capitalistas, esses gastos evitavam a recessão e asseguravam elevado
nível de emprego. Esse fundamento econômico teve importância próxima à dos
fundamentos político-estratégicos da Guerra Fria. Ambos explicam a escalada na
produção e armazenamento de arsenais nucleares, bem como as posteriores
tentativas de estabelecer novos ciclos tecnológicos por meio da bomba de
nêutrons (final dos anos 1970) e do projeto Guerra nas Estrelas (anos 1980). O envolvimento
militar dos EUA nas guerras da Coréia e do Vietnã e em golpes militares
latino-americanos, entre outros conflitos locais de impacto mundial,
enquadra-se nesse contexto.
Associado à
Guerra Fria, o projeto de uma política econômica e social que evitasse grandes
oscilações econômicas tomou forma nas diversas variantes de intervencionismo
keynesiano nos EUA, Europa Ocidental e Japão. Dos fortes sistemas reguladores
nos EUA aos Estados europeus mais diretamente envolvidos com o sistema
produtivo, passando pela variante nipônica de forte engajamento do Ministério
da Indústria e Tecnologia (MITI) com a poderosa central nacional do
empresariado (Keidanren), várias foram as modalidades de intervenção econômica
dos Estados capitalistas nos países desenvolvidos, todos praticando políticas
anti-cíclicas de estabilização.
A reconstrução
daquelas economias no pós-guerra, contando com expertise empresarial,
alta capacitação da força de trabalho, apoio de programas governamentais e
financiamento estadunidense à Europa e Japão por meio do Plano Marshall, não
demorou a constituir um forte setor privado. Empresas européias, nipônicas e
estadunidenses, uma vez reconstruídos seus mercados domésticos, passaram a
diversificar territorialmente suas operações, instalando filiais em diversos
continentes (HOBSBAWM, 2002). O padrão industrial fordista então vigente,
combinado com um padrão estatal regulacionista, foi determinante não apenas
para os aspectos produtivos e macroeconômicos, mas também para as relações de
trabalho e o próprio conceito de trabalho predominantes na época em foco.
O conceito atual
de trabalho decente deita raízes nas práticas consolidadas ao longo desse
período. O formato típico do contrato de trabalho nas economias centrais do
capitalismo incorporava conquistas crescentes em termos salariais, de condições
de trabalho e benefícios, além de direitos previdenciários. Esses atributos
combinavam-se com políticas públicas que disponibilizavam diversas formas de
salário indireto, como educação e saúde públicas ou subsidiadas, crédito para a
aquisição de moradia e bens de consumo duráveis, bem como ampliação das
atividades de lazer acessíveis à população trabalhadora. A institucionalização
dessas relações de trabalho variou da legislação mais minuciosa da Europa Continental
aos contratos coletivos de trabalho que incorporavam crescentes vantagens
trabalhistas nos EUA.
O fortalecimento
do sindicalismo e dos partidos políticos a ele relacionados foi fundamental
para o alcance desses direitos e conquistas. Com base nas intensas lutas
sociais da época e na relativa prudência dos governos europeus, que ainda
mantinham fresca a memória dos tumultuados anos 1930, as conquistas sociais e
trabalhistas se avolumaram. O papel hegemônico dos EUA também favorecia a conquista
de direitos crescentes nos contratos de trabalho, seguindo o padrão menos legislador
e mais contratual desse país em relação aos seus pares europeus.
Assim, o emprego
formal, com direitos previdenciários e um cardápio de benefícios que se ampliou
ao longo do tempo, adquiriu características cada vez mais consolidadas. Da
tradição do emprego vitalício no Japão à relativa estabilidade empregatícia nos
países ocidentais, assegurada por sistemas crescentes de seguro-desemprego e
pelo crescimento econômico do pós-guerra (que conheceu o “milagre alemão” e o
“milagre japonês” entre os anos 1950 e o início dos 1960), parecia ter surgido
no mundo capitalista um paradigma muito distinto daquele do entre-guerras. Como
dito, as diversas formas de salário indireto integravam o padrão social dessa
época.
O emprego
emblemático do período, nos países desenvolvidos, era obtido junto a uma
indústria ou empresa de serviços, com registro formal, direitos legais ou
contratuais e acesso à previdência social. Os norte-americanos nascidos nesse
período de afluência, logo após o retorno dos soldados da IIa
Guerra Mundial, formam hoje a geração sexagenária do baby-boom,
origem dos prognósticos pessimistas sobre o sistema previdenciário dos EUA nas
próximas décadas. É que o mercado de trabalho mudou consideravelmente desde
então e a relação entre contribuintes e beneficiários do sistema sofreu forte
deterioração, no momento em que os baby-boomers começam a se aposentar.
No entanto, em seu período formativo, essa geração conheceu o paradigma que
hoje se procura resgatar com a campanha pelo trabalho decente.
Outra importante
transformação do período ocorreu fora do mundo capitalista desenvolvido. Na
vasta porção do planeta à época denominada de Terceiro Mundo, inúmeros países
nasceram, conquistaram sua independência ou – mesmo entre nações constituídas
já desde o séc. XIX - desencadearam intensos processos de industrialização e
urbanização. O alvo perseguido era a sociedade de consumo do capitalismo
desenvolvido, com poucas exceções que
buscaram emular a sociedade soviética estendida à Europa Oriental (o que
ocorreu particularmente na China, Vietnã e Cuba).
Nesse processo,
a industrialização latino-americana, particularmente, foi expressiva e nela o
Brasil adquiriu a liderança. Teorias originais, especialmente aquela gestada no
âmbito da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), davam a tônica das
políticas deliberadas de industrialização substitutiva de importações.
Recusava-se o tradicional modelo primário-exportador, responsabilizado pela
vulnerabilidade a crises externas, pelo atraso sócio-econômico e pela pobreza
endêmica. Tarifas protecionistas, taxas múltiplas de câmbio, crédito para a
implantação de grandes projetos industriais e de infra-estrutura e participação
direta do Estado na produção, especialmente de bens intermediários, eram os
eixos dessas políticas.
Os resultados
foram contraditórios. O receituário cepalino foi aplicado de forma incompleta.
O campo ficou imune a transformações durante as primeiras décadas, enquanto o
mercado de trabalho urbano se dinamizava. O resultado foi a manutenção da
pobreza no campo e forte êxodo rural, mantendo-se parte significativa dos
migrantes à margem do novo mercado de trabalho. A ausência de reformas
educacionais e a opção por indústrias intensivas em capital – em grande parte,
multinacionais dos países desenvolvidos que ampliavam seu raio de operações -
tornaram esse quadro inevitável. A ausência de planejamento urbano e de
expansão dos serviços sociais básicos fez com que houvesse uma transferência da
pobreza rural para a exclusão urbana, mitigada nos períodos de forte
crescimento econômico.
Esses períodos
não deixaram de ocorrer. O Brasil, por exemplo, foi campeão mundial de
crescimento econômico durante as primeiras oito décadas do século XX, liderado,
a partir dos anos 1930, pelo setor industrial.
No quadro de uma economia em forte expansão, parecia aos milhões de
migrantes que as novas oportunidades abertas pela indústria representavam o
caminho para o sucesso pessoal. Assim foi, com efeito, para muitos. Trabalho
com carteira assinada e direito à aposentadoria tornou-se um direito ampliado a
muitas famílias de migrantes de todos os rincões do País, nos maiores centros
industriais brasileiros. Mas uma parcela crescente ficou à margem e, ao
primeiro solavanco da economia, encontrou-se em situação de grande
vulnerabilidade social.
A pretensão dos
países em processo de industrialização, particularmente na América Latina, era reproduzir
os padrões de vida dos países desenvolvidos, aí incluídas as condições do
mercado de trabalho. Aceito o fato de que à menor produtividade deveria
corresponder um nível mais baixo de remuneração média e de benefícios, o modelo
a seguir era o daqueles países. Contudo, o que se observou foi significativamente
diferente, por diversas razões.
Primeiramente,
os direitos trabalhistas no Hemisfério Norte foram arrancados à base de fortes
lutas sociais, ao longo de décadas. Particularmente nos anos do pós-guerra, as
circunstâncias mencionadas acima pesaram a favor da acumulação de conquistas
legais e contratuais. Já na América Latina, tais direitos foram concedidos por
regimes que buscavam enquadrar o movimento operário em instituições estatais e
políticas populistas, evitando a organização e consciência independente dos
trabalhadores. O Brasil é emblemático: a CLT foi criada em 1943, sob a ditadura
do Estado Novo, quando as organizações operárias haviam sido desmanteladas,
seus integrantes submetidos a brutal repressão e a massa trabalhadora se via
exposta à intensa propaganda oficial de um regime inspirado nos fascismos
europeus. Não é de admirar o culto a Getúlio Vargas como “Pai dos Pobres”,
espécie de “deus ex-macchina” concessor de direitos trabalhistas por
benemerência, culto que sobreviveu à redemocratização e perdurou muitos anos
após sua trágica morte.
Em segundo
lugar, já se mencionou a exclusão dos trabalhadores rurais dos direitos
trabalhistas. Em grande medida, a razão foi o pacto gestado após a Revolução de
1930, quando a burguesia industrial, agora preponderante na condução dos
negócios públicos, buscou preservar as oligarquias agrárias em troca da
renúncia destas ao poder. Esse pacto mostrou sua viabilidade quando a
oligarquia paulista ficou isolada do restante do País em 1932, ao sublevar a
classe média contra o recente Governo Provisório varguista.
Terceiro, o
padrão de industrialização seguido nos anos 1960 a 1970 permitiu a ampliação do
mercado de trabalho formal a segmentos expressivos da classe trabalhadora e aos
escalões médios e gerenciais, em expansão durante todo o período. Mas, como já
referido, parcela crescente dos migrantes rurais não se adaptava aos requisitos
desse padrão. Os processos de concentração econômica ocorridos durante os
ciclos militares, quando as condições políticas permitiram a aplicação de
medidas recessivas e a adoção de diretrizes pró-grande capital doméstico e
estrangeiro nas economias latino-americanas, reforçaram essa tendência.
Dessa forma,
constituiu-se um mercado de trabalho formal ao lado de diversas formas de
trabalho semi-formalizado, por tempo parcial, ou, simplesmente, informal, que
extraía renda das possibilidades de consumo dos empregados formais, enquanto
estes puderam progredir e se multiplicar em termos quantitativos. As condições
de trabalho no próprio mercado formal de trabalho eram inferiores às dos países
centrais, bem como as remunerações. Os diversos regimes militares implantados
no subcontinente reforçaram as restrições à mobilização por maiores direitos,
mantendo um patamar limitado de direitos sociais e trabalhistas. Durante esse
período, o conceito de trabalho se identificava com as práticas e instituições
vigentes no mercado formal.
Enquanto houve
crescimento econômico, os segmentos excluídos do mercado formal se ajeitavam
nas margens do sistema. Tão logo se encerrou o dinamismo econômico do
subcontinente (na década perdida – anos 1980), esses segmentos foram os
primeiros a resvalar para a marginalização social. Foram seguidos, ao longo do
decênio, pelos setores mais atingidos pelas políticas recessivas entre os
trabalhadores formais. No Brasil, em especial, submetido ao controle do FMI, o
desemprego retornou em grande escala nos primeiros anos da década e o
desconforto social gerado, atingindo inclusive setores médios e o pequeno empresariado,
ocasionou uma crise política que culminou com a queda do regime militar.
É nesse período,
aliás, que se desenvolve o que se chamou à época o “novo sindicalismo”,
buscando assegurar direitos e preservar empregos, associando essas lutas àquela
mais geral pela democracia, imprescindível para a manutenção e ampliação das
conquistas sociais.
Enfim, o período
que alguns denominaram “Os Anos Dourados” circunscreveu seus efetivos avanços a
pouco mais de uma dúzia de países do Hemisfério Norte e foi reproduzido, porém
com menos sucesso do ponto de vista sócio-econômico, na América Latina. Nesta,
alguns países lograram atingir graus distintos de industrialização e
urbanização, mas sem alcançar os padrões de bem-estar daqueles países
emblemáticos. Ao contrário, novas formas de desigualdade foram constituídas,
substituindo a antiga dicotomia rural-urbano.
Convém
assinalar, como contraponto, o desenvolvimento de algumas economias asiáticas,
à época não tão em evidência. Coréia do Sul e Taiwan também vinham se industrializando,
com estratégias público-privadas originais e uma atenção maior a algumas
políticas sociais – especialmente a educação – que na América Latina. Porém, a
ascensão efetiva dessas economias só se tornou evidente no período seguinte,
simultaneamente ao grave impasse enfrentado pela América Latina nos anos 1980,
como visto a seguir.
Essa era a
situação do subcontinente quando o mundo capitalista desenvolvido passou a
enfrentar fortes transformações, iniciadas por crises econômicas e consubstanciadas
em mudanças de paradigmas de política pública e gestão privada.
3.2 Neoliberalismo,
mundialização do capital e retrocesso nas relações capital-trabalho
Um olhar
histórico, como o que se busca neste artigo, produz forte impressão quando se
compara o conceito e a prática do trabalho na atualidade com o que ocorria há
apenas quatro décadas, ou ainda menos. Aspectos centrais se perderam nesse
intervalo, em decorrência das profundas transformações ocorridas no modo de
funcionamento do capitalismo, seja no plano do mercado, seja no das políticas
públicas. Não se poderia compreender a presente campanha pelo trabalho decente
sem acompanhar esse processo de regressão social que remonta às décadas
citadas. A impressão nítida é que o capital, apoiado em governos e ideologias
conservadoras, buscou recuperar o que fora obrigado a ceder aos trabalhadores e
aos grupos sociais de baixa renda nas primeiras décadas do pós-guerra.
O processo
inicial dessa mudança ocorre já vinte e cinco anos após o encerramento da IIa
Guerra Mundial. De fato, os anos 1970 trouxeram turbulências ao funcionamento
do padrão dos “Anos Dourados”. A primeira delas foi o fim do pilar monetário
vigente desde os acordos de Bretton Woods (1944), quando o Presidente Nixon
decretou a inconversibilidade do dólar em 1971. Oscilações de taxas de juros e
de câmbio marcaram os anos seguintes. Dois choques do petróleo (1973 e 1979)
tiveram impactos de custos muito fortes nas principais economias do mundo. E o
endividamento do Estado norte-americano, cuja escalada parecia incontrolável,
tornou-se uma preocupação crescente para todos os operadores, dirigentes e
analistas da economia capitalista internacional. Os anos finais da década foram
marcados nos EUA pela “estagflação” – uma inesperada combinação de inflação e
estagnação econômica, contrariando os paradigmas teóricos até então
predominantes.
Muitos foram os
impactos desses novos desafios. Primeiramente, a reação do Banco Central do EUA
(Fed): um aumento brutal das taxas de juros para frear a inflação. Combinado
com o segundo choque do petróleo, esse aumento levou à quebra da economia
brasileira e de diversos outros países latino-americanos. O resultado foi a
ingerência do FMI nessas economias, ocasionando fortes recessões. O desemprego
em massa tornou-se uma realidade, com grande efeito sobre as práticas do
mercado de trabalho daí em diante. Os anos 1980 se consagraram como a “década
perdida” na América Latina.
Outro impacto,
ainda maior porque de abrangência verdadeiramente mundial, foi a reação teórica
que se seguiu. O keynesianismo, até então hegemônico nos ambientes acadêmicos e
nas diretrizes de política pública dos Estados capitalistas, foi seriamente
questionado pela escola dos chamados novos clássicos, apoiada na Teoria das
Expectativas Racionais. Sucessora do monetarismo da Escola de Chicago, essa
corrente pregava o afastamento do estado de toda atividade produtiva e a
desregulamentação de atividades até então sujeitas a regras consolidadas. Entre
elas, o mercado de trabalho, cuja regulamentação legal passava a ser vista como
obstáculo ao desenvolvimento. O próprio conceito de desenvolvimento passava a
ser cada vez mais associado à simples acumulação de riquezas. Sua distribuição
passava a ser cada vez mais atribuída ao mercado. O Estado, nesta interpretação,
gerava apenas distorções e entraves ao crescimento da economia e devia voltar
aos pressupostos liberais do desengajamento econômico, deixando o terreno livre
à iniciativa privada.
A ascensão desse
ideário foi concomitante a uma nova onda conservadora na política, inaugurada
pelos governos Thatcher na Grã-Bretanha (1979-89) e Reagan nos EUA (1981-89).
Dos dois lados do Atlântico Norte, o Estado intervencionista passou a ser
satanizado, como indica o lema de campanha de Reagan: “O Governo não é a
solução, ele é o problema”. Políticas desregulamentadoras, privatizações e
ofensivas anti-sindicais tornaram-se a regra desses governos e de todos os que
procuraram copiá-los pelo mundo afora. O desmoronamento da URSS e dos países do
Leste europeu pareceram consagrar essa visão radicalmente antiestatal (ANAU,
2008). E os efeitos sobre o mercado de trabalho foram pesados.
Duas observações
devem ser feitas antecedendo o foco nas relações capital-trabalho. A primeira,
sobre a queda dos regimes ditos socialistas. Não há espaço neste artigo para
analisar suas causas, mas é inegável que a “Segunda Guerra Fria” desencadeada
por Reagan – com o projeto Guerra nas Estrelas, o financiamento a apoio ao Taliban
contra as forças de ocupação soviéticas no Afeganistão e o abandono das
negociações efetivas sobre a contenção da corrida armamentista – exerceram
pressão insuportável para o já frágil equilíbrio interno do regime soviético.
Confirmou-se mais uma vez a previsão do Relatório NSC-68, de que, ao contrário
do Ocidente capitalista, a corrida armamentista era um peso morto para a
economia soviética, desviando recursos necessários à melhoria da qualidade de
vida, em um regime totalitário cuja eventual legitimação só poderia advir dessa
melhoria (FUSFELD,id., ibid.). Isso
se agravava pelo acúmulo da insatisfação social ao longo de décadas, inclusive
pela inexistência de canais legítimos para expressão da sociedade.
A derrubada do
Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, com a conseqüente crise
terminal dos regimes dela dependentes no Leste europeu, aparentaram validar a
estratégia agressiva das potências capitalistas, embora tenham sido produzidas
pelas populações locais e não pelo enfrentamento militar. Ademais, esses
processos pareceram a muitos dar validade também às políticas antiestatais em
prática desde o início dos anos 1980 na dupla EUA/Grã-Bretanha, as quais
tornaram-se um paradigma cada vez mais disseminado no mundo capitalista
(HOBSBAWM, 2002). Governos social-democratas europeus aderiram às estratégias
ligadas ao refrão “mais mercado-menos Estado”, dissolvendo muitas das
fronteiras que os separavam de seus opositores do campo liberal-conservador,
enquanto os mais fortes partidos comunistas pró-soviéticos se transmudavam em
defensores da economia de mercado “social”, alguns alterando até mesmo suas
denominações, consagradas nas décadas da Guerra Fria.
A segunda
observação necessária refere-se ao impacto do contexto internacional descrito
sobre a evolução das forças políticas e das políticas públicas na América
Latina. Burguesias imitadoras sem originalidade, incapazes de buscar sequer a
essência dos paradigmas a imitar, limitando-se aos seus aspectos aparentes e
exteriores e ignorantes dos respectivos contextos abrangentes e dos contrapesos
a tais paradigmas nos países de origem dos mesmos, engajaram-se tardiamente no
novo padrão emanado dos países centrais do capitalismo, de forma tosca. O
Consenso de Washington, em 1989, consolidou as novas normas pró-mercado e
anti-Estado para todo o subcontinente.
Tomando o Brasil
como exemplo, o País abriu seu mercado às importações, sem negociar quaisquer
contrapartidas, abriu bruscamente a conta de capital, sem adotar qualquer
estratégia gradativa, como tantos alertaram, e passou a um processo selvagem de
privatização de estatais produtivas. Demissões de servidores, deterioração dos
serviços públicos, recessão persistente e hiperinflação se combinavam para
produzir o pior dos mundos para os assalariados e a população de baixa renda.
Isso se combinou com ofensivas anti-sindicais e de críticas em tom cada vez
mais agressivo às conquistas trabalhistas existentes.
Finalmente, em
2004, a inflação foi domada com o Plano Real. Contudo, a estratégia de
apreciação cambial prolongada não tardou em criar impasses no Balanço de
Pagamentos, forçando a elevação das taxas de juros a patamares estratosféricos.
A entrada de capitais de arbitragem (voláteis) foi a única saída encontrada em
face da insuficiência dos capitais externos atraídos pelas privatizações, não
obstante estas terem prosseguido em ritmo avassalador. O efeito do capital
volátil foi duplo: aumentar a dependência da economia em relação a altas taxas
de juros; e, em contrapartida a estas últimas, manter o Estado brasileiro em
rota de crescentes déficits, que se buscou contornar com aumento da carga
tributária, além de constranger o investimento produtivo. Carga tributária em
alta e baixos investimentos convergiram para manter taxas medíocres de
crescimento econômico e dos empregos.
Não é de
espantar a enormidade do que se convencionou chamar de exclusão social. Desemprego persistente em patamares muito
elevados, acesso deficiente a serviços públicos, queda na qualidade destes e em
sua continuidade e acessibilidade (SACHS, 2003), desqualificação da massa dos
desempregados como “inempregáveis” (culpando-os pela sua desdita), foram a
tônica do período.
O mais grave é
que não se tratou de um processo exclusivo do Brasil. Nos próprios centros do
capitalismo, as conquistas trabalhistas e a ação sindical foram seriamente
abaladas. Na Europa, a informalidade, agravada pelas levas de imigrantes da
África, Ásia e, agora, do Leste europeu, atingiu também a capacidade de
mobilização sindical. A crise ideológica dos partidos mais identificados com o
sindicalismo contribuiu para a inércia e o desarmamento político desses
segmentos face à maré montante conservadora. O assim denominado neoliberalismo
pareceu tornar-se imbatível[7].
As estratégias
privadas também se modificaram com o ambiente político e ideológico descrito.
Novas tecnologias, desenvolvidas nas décadas anteriores, culminaram com a
possibilidade de transmissão de dados em tempo real e com grandes aumentos de
eficiência nos transportes. Novos métodos de produção flexível, adaptável a
mercados mutantes, tornaram-se possíveis. A transferência de plataformas de
produção mundo afora tornou-se viável. O capital adquiriu uma mobilidade
mundial que ultrapassava os sonhos mais inimagináveis. Podia agora explorar os
diferenciais de custo do trabalho e de regras ambientais e financeiras,
transferindo-se continuamente entre os continentes. A mundialização do capital
tinha como contrapartida a lentidão dos sistemas jurídicos nacionais e das
máquinas burocráticas dos Estados nacionais em se adaptar a novas
contingências. Adicionou-se a isso uma política ativa de bloqueio à mobilidade
internacional da força de trabalho, em contraposição à inédita liberdade de
movimentos do capital, por meio de intensas políticas de restrição à imigração
e de combate a imigrantes.
Gerou-se assim,
apoiada nas ideologias antiestatais discutidas anteriormente, o mito da
obsolescência dos Estados nacionais. Ainda mais, buscou-se convencer a opinião
pública mundial de que a eliminação das restrições legais ao pleno desfrute dos
recursos humanos e naturais pelo capital, assim como a queda de toda barreira
legal ao movimento financeiro entre países, era imprescindível à recepção de
capitais aptos a escolher entre países receptores. Segundo essa interpretação,
cada vez mais hegemônica, a negativa em derrubar tais legislações, regras e
barreiras somente isolaria o país renitente de todo o progresso tecnológico,
econômico e, supostamente, social em curso no mundo, após a vitória do
capitalismo sobre seu maior concorrente – o pretenso socialismo caído com o
Muro de Berlim. A essa tendência mundial passou-se a chamar globalização e às
políticas a ela conformes, neoliberais.
A propaganda do
que mais tarde foi chamado o Pensamento Único adquiriu uma força mercadológica
que chegava a igualar a força estatal da ideologia dos antigos Estados do Leste
europeu, autodenominados socialistas, que faziam passar os regimes totalitários
de partido único como o socialismo realizado na Terra. Ela ocultava aspectos
fundamentais da realidade, nem tão nova quanto se autoproclamava. O capital
sempre desejou desvencilhar-se dos controles estatais em todos os domínios. Mas
não estamos mais na época de Adam Smith, com um mercado pulverizado em milhares
de ofertantes e milhões de consumidores. Algumas centenas de poderosas
corporações mundiais e um número ainda mais reduzido de grandes grupos e fundos
financeiros controlam o essencial da produção, das transações financeiras e do
comércio internacional – na verdade, parcela muito considerável desse comércio
se dá no interior dessas corporações, entre matrizes e filiais. E o próprio
Smith alertou contra a tendência do capital, caso não sujeito a regras
estáveis, de apropriar-se em proveito próprio de serviços de interesse público,
bem como a se organizar para lesar seus clientes e demandantes. A mitologia
liberal não coincide com a obra de seu principal inspirador, nem em sua época,
nem, muito menos, na nossa.
O balanço dessa
época ainda está para ser feito, mas seus efeitos são muito visíveis. A
informalidade e a precariedade nas relações de trabalho avançaram muito nos
países centrais. Os EUA vangloriam-se hoje da flexibilidade de sua força de
trabalho em relação a jornadas e outros benefícios. Parece ter sido em outro
país que o emprego paradigmático tinha jornadas definidas, horas extras regulamentadas,
salários crescentes acompanhando a produtividade e benefícios generosos. O
típico trabalhador qualificado, com residência de bom padrão na periferia dos
centros urbanos, automóvel atualizado, horários regulares, filhos na faculdade
e passeios dominicais com a família, assemelha-se hoje ao retrato de um
tataravô remoto. Esse perfil era a maior propaganda do capitalismo contra seu
contendor na Guerra Fria. E não se passaram mais de quatro décadas do declínio
desse paradigma!
Na Europa
Ocidental, os processos de mudança são heterogêneos. Se os EUA gozam da
condição de maior economia mundial e emissor da moeda mundial, Alemanha e
Grã-Bretanha sobressaem sobre os demais países na adaptação aos novos padrões,
mas não sem custo social, com aumento da informalidade e redução de direitos,
especialmente previdenciários. Este é maior nos demais países da União Européia
(vide a recente mobilização nacional na França contra a piora das regras
previdenciárias propostas pelo governo) e chega à beira do abismo naqueles que
demonstraram sua vulnerabilidade face à crise econômico-financeira deflagrada
em 2008. No Leste, a desorganização do modelo estatal deu lugar a uma espécie
de capitalismo selvagem, gerador de enormes migrações que conturbam o mercado
de trabalho da parte ocidental do continente. A Rússia e outras repúblicas da
ex-URSS voltaram à condição de fornecedoras de matérias-primas aos países
desenvolvidos – como mostra a crise do gás natural, objeto de conflito com a
Ucrânia que quase chegou às vias de fato e ameaçou a Europa desenvolvida de
desabastecimento energético. E a classe trabalhadora, antes oprimida pelos
capatazes do Estado, hoje se submete à nova classe empresarial em atividades de
baixo valor agregado, vê muitos de seus integrantes desempregados ou
subempregados e assiste à luta de facções quase mafiosas pelo controle político
e dos recursos produtivos do país. Por toda parte, crescem o desemprego e a
informalidade, origem de maior precariedade social. E esse panorama somente se
agravou com a eclosão da presente crise mundial.
Na América
Latina, o que já não era tão sólido antes da década perdida tornou-se dramático
a partir da mesma. Crescimento exponencial da informalidade, que para o Brasil é
estimada em cerca de metade da população ativa na primeira década do novo
milênio; ampliação dos contingentes excluídos de padrões mínimos de vida digna,
com a falta de oportunidades de emprego formal, educação e qualificação
profissional[8];
deterioração dos serviços públicos, caos urbano e metropolitano e inchaço de
favelas e habitações precárias, povoaram as cenas típicas do subcontinente.
Os anos recentes
viram uma reviravolta política em diversos países latino-americanos, com a
ascensão de governos mais preocupados com a redução da dívida social e com o
fortalecimento da capacidade de intervenção dos Estados nacionais. O Brasil é
um exemplo, mas não o único. Nos últimos oito anos, foram gerados mais de doze
milhões de empregos formais, comparativamente aos menos de um milhão criados
nos oito anteriores. A recuperação paulatina do salário mínimo e das
aposentadorias, as políticas redistributivas lideradas pelo Bolsa-Família, a
ampliação do crédito, as robustas reservas cambiais acumuladas desde 2002 e a
estratégia anticíclica bem-sucedida no auge do impacto da crise mundial sobre a
economia brasileira deram a esta uma agilidade para superar tais impactos e
retomar o crescimento econômico em tempo recorde. Felicitações são merecidas,
mas o desafio permanece. A dívida social sobressalente ainda é vultosa e deve
ser enfrentada com ampliação das políticas públicas bem sucedidas do período
recente.
Em resumo,
vivemos em um mundo em que o modelo dos Anos Dourados vem se tornando uma
lembrança quase virtual, uma relíquia do passado. Em nosso país e em alguns vizinhos
da América Latina, houve avanços importantes, mas continua a existir um déficit
acumulado de exclusão social e negação dos principais direitos trabalhistas e
previdenciários para camadas ainda amplas da população. Esse quadro permite
compreender as razões da OIT para lançar agendas pelo trabalho decente, que
recuperem boa parte das conquistas eliminadas pela emergência das políticas
liberais de matriz conservadora ao redor do planeta.
4. Algumas Propostas para a Difusão do
Trabalho Decente no Brasil
Ao final de 2008,
o cenário internacional apresentava um quadro econômico sombrio, com a crise do
mercado imobiliário americano espraiando-se para o sistema financeiro dos EUA e
do resto do mundo, e por esta via, atingindo fortemente a produção, o consumo e
os investimentos em todo o planeta. Dois anos depois, após um forte movimento
de intervenção do Estado em vários países, inclusive no Brasil, nos campos da
política monetária e fiscal, o quadro é de retomada de crescimento econômico.
No caso brasileiro, a perspectiva do crescimento do PIB nesta primeira metade
da década é de pelo menos 5 % ao ano em média.
O ambiente de
crescimento econômico e de expansão do emprego recoloca condições favoráveis
para uma política de difusão do trabalho decente[9], a
ser executada pelo poder público (Federal, Estadual e municipal) e pelos
agentes privados (empresariado, movimento sindical, representações da sociedade
civil e terceiro setor). Vale lembrar, neste sentido, as três prioridades
lançadas pelo Governo Federal, em maio de 2006, no Conselho Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, em
relação à Agenda Nacional do Trabalho Decente, a saber: 1) gerar mais e
melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento; 2) erradicar
o trabalho infantil e o trabalho escravo; 3) fortalecer o diálogo social e o
tripartismo, como instrumento de governança.
Em face do cenário
mencionado e destas prioridades da agenda do trabalho decente no Brasil, é que
apresentamos a seguir, de maneira itemizada, algumas proposições de ações para
serem debatidas e articuladas entre o setor público e privado, visando a
mencionada difusão do trabalho decente no Brasil.
a) Intensificar
as já existentes políticas de fiscalização e penalização criminal e econômica
ao trabalho escravo, bem como a retirada das crianças do trabalho, por meio da
concessão de bolsas de estudo para aquelas que voltam à escola.
b) Dar
continuidade à política de valorização do salário mínimo, que vem sendo
executada desde 2004 pelo Governo Federal, por meio de aumentos nominais do
salário mínimo em patamares superiores ao crescimento da inflação.
O impacto sobre a previdência – maior
obstáculo a uma política de valorização do salário mínimo no Brasil, em virtude
de o salário mínimo se constituir no piso do benefício previdenciário – poderia
ser minimizado com uma reforma tributária, inclusive com a aprovação do Imposto
sobre Grandes Fortunas, que canalizasse novos recursos para a Previdência.
Além disto, a política de valorização do
salário mínimo pode ocorrer também por intermédio da redução dos impostos sobre
a cesta básica e de outros itens que compõem os gastos dos trabalhadores de
baixa renda.
c) Incentivar
acordos nacionais bipartites (negociações e convenções coletivas de trabalho
envolvendo empresariado e representações sindicais[10])
e tripartites (poder público, empresariado e movimento sindical) que tenham
como objeto a melhoria da remuneração e das demais condições de trabalho dos
segmentos mais vulneráveis do mercado de trabalho – acordos estes a serem
estabelecidos por setor (trabalho doméstico, rurais, construção civil, comércio
e prestadores de serviços) e/ou por segmento social (jovens, mulheres, negros,
deficientes)[11].
d) Enfrentar o
debate dos trabalhadores autônomos e do microempreendedor individual
O trabalho
autônomo é uma realidade. É preciso enfrentar este desafio. Neste sentido, do nosso ponto de vista, um
dos programas potencialmente vigorosos, que pode contribuir em larga escala
para a difusão do trabalho decente no Brasil, é o que constitui e apóia o Microempreendedor
Individual (MEI).
A Lei Complementar
nº 128, de 2008 - e que alterou a Lei Geral das Micro e Pequenas empresas nº
123, de 2006, assinada pelo Governo Lula - busca incentivar a formalização do “microempreendedor
Individual”, que é o pequeno negócio que tem receita mensal de até R$ 3000,00
ou anual de até R$ 36000,00. A Lei incentiva a constituição formal deste
trabalhador como empresa (com o direito de emitir notas fiscais), bem como
possibilita sua inclusão previdenciária. O MEI poderá, ainda, contratar
formalmente até um funcionário pagando taxas menores do que as pagas por uma
empresa de maior porte. No caso do MEI, as taxas serão de 3% para a previdência
e 8% para o FGTS sobre o salário mínimo por mês. Neste caso, o empregado
contribui com 8% do seu salário para a previdência.
Trata-se de um
programa social e econômico de grande alcance, porque lida com milhões de
pessoas que se encontram nesta situação de trabalho hoje efetivamente
precarizada. Nesta, encontram-se vários ambulantes, cabeleireiras, manicures,
motoboys, confeiteiras, sapateiros, borracheiros, costureiras, marceneiros,
vendedoras de cosméticos, chaveiros, pintores, entre tantos outros. O
Sebrae listou quatro centenas de
atividades que poderiam ser enquadradas como microeemprededores individuais.
O formato do
programa requer que o microempreendedor interessado acesse um site oficial
(www.portaldoempreendedor.gov.br) e faça o seu cadastramento. A partir daí, e
recolhendo o valor de aproximadamente R$ 60,00 por mês (que já inclui o
pagamento de ISS, ICMS e INSS), ele poderá emitir nota fiscal e ter direito aos
benefícios previdenciários. O MEI, devidamente cadastrado, está isento do IRPJ,
da CSLL, do PIS, da COFINS, do IPI e da contribuição patronal ao INSS.
A lei federal,
para ter efeito pleno, necessita ser regulamentada por lei estadual e também
municipal.
e) Aproveitar a
oportunidade gerada pelos investimentos para a Copa do Mundo (2014) e Jogos
Olímpicos (2016) com vistas a promover protocolos de entendimento com governos,
instituições organizadoras, empresas e movimento sindical, com o objetivo de
garantir o trabalho decente. Os setores-foco desta ação são a construção civil,
a hotelaria, os aeroportos e os transportes.
f) Promover
Grupo de Trabalho tripartite para sugerir alterações necessárias na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), respeitando-se
as diretrizes de preservação dos direitos sociais e do incentivo à negociação
coletiva.
g) Aprovar, no âmbito do Congresso
Nacional, legislação que regulamente e controle a terceirização.
h) Buscar estabelecer, no âmbito das
multinacionais, juntamente com os sindicatos de outros países, acordos marco
global (international framework agreement),
que garantam empregos de qualidade e o trabalho decente na matriz, nas subsidiárias
e na cadeia produtiva em geral.
5 O caso da Região do ABC e o Decreto Municipal
de São Bernardo do Campo em prol do Trabalho Decente
Realizado em março de 2009, em São Bernardo
do Campo, o Seminário “O ABC do Diálogo e do Desenvolvimento” - que reuniu
Prefeituras, Consórcio Intermunicipal dos sete municípios do Grande ABC,
Agência de Desenvolvimento Econômico do ABC, representações empresariais,
sindicais e da sociedade civil - constituiu Grupo de Trabalho responsável pela
elaboração da Agenda Regional do Trabalho Decente na Região do ABC[12].
A partir da constituição do “GT pelo Trabalho
Decente no ABC”, montou-se o “Comitê Gestor da Agenda”, que foi instalado
formalmente no início de fevereiro e composto por representantes dos
trabalhadores, dos empresários e do poder público no ABC.
Após a elaboração do “diagnóstico” do déficit
de trabalho decente na Região, a difusão da proposta de Agenda e a organização
de uma série de seis pré-conferencias por cidade, realizou-se a 1ª Conferência
Regional de Trabalho Decente do ABC, em meados de 2010, com a participação da
OIT, Prefeituras, Ministério do Trabalho, empregadores e sindicatos.
A Agenda Regional
do Trabalho Decente no ABC trabalha com as seguintes áreas temáticas, visando a
promoção do trabalho decente na região: trabalho e renda; proteção social; Igualdade de oportunidades e de tratamento e
Diálogo social.
Antecipando-se a
esta própria agenda regional, cabe destacar a iniciativa do Governo de São
Bernardo do Campo, que é a do Decreto Municipal em prol do Trabalho Decente.
Com esta medida, que é pioneira no Brasil, as empresas ganhadoras de licitações
terão que garantir aos seus empregados condições de trabalho decente.
Estabelece o
Decreto:
Gabinete do Prefeito
Decreto
Dispõe sobre o incentivo à prática do
Trabalho Decente nas contratações feitas pela Administração Pública do
Município de São Bernardo do Campo,
LUIZ MARINHO, Prefeito do Município de São Bernardo do Campo, no uso de suas
atribuições legais, e
Considerando os preceitos estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho
(OIT) relativos ao Trabalho Decente,
Considerando ainda que o respeito à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), bem
como aos acordos e convenções coletivas de trabalho estabelecidos entre os
representantes de trabalhadores e dos empregadores é condição fundamental para
o Trabalho Decente,
Resolve:
Artigo 1º. Todos os procedimentos
relacionados à contratação de obras e serviços no âmbito da Administração
Municipal deverão estabelecer, como incentivo à prática do Trabalho Decente, a
necessidade de que, previamente à lavratura do ajuste, as empresas declarem,
expressamente, o compromisso com tal prática.
Parágrafo único. Considera-se ‘Trabalho
Decente’ para os efeitos deste Decreto, aquele tido como um trabalho produtivo
e adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, eqüidade e
segurança, sem quaisquer formas de discriminação, e capaz de garantir uma vida
digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho.
Artigo 2º. Este Decreto entra em vigor na
data de sua publicação, revogada as disposições em contrário.
Gabinete do Prefeito, em 12 de março de
2010.
Luiz Marinho - Prefeito do Município de São
Bernardo do Campo
Este decreto tem
um importante caráter simbólico e prático.
Não apenas porque as empresas fornecedoras de serviços para o poder
público terão maiores dificuldades de utilizarem da precarização da mão-de-obra
para aumentarem sua competitividade nas licitações, mas também porque o decreto poderá ser reproduzido
em vários outros municípios do País, como é o caso de Mauá, na própria Região
do ABC, que recentemente também aprovou decreto municipal semelhante.
Conclusão
O conceito de
trabalho sofreu grandes transformações ao longo dos cerca de dois séculos e meio
de existência do capitalismo moderno. As circunstâncias concretas do pós-IIa
Guerra Mundial levaram à emergência de um padrão de direitos e práticas
trabalhistas que se transformou em paradigma de bem-estar, embora circunscrito
a um número reduzido de nações e limitado a algumas décadas de duração. Os
últimos trinta anos trouxeram um ataque direto àquele padrão em escala mundial,
atingindo não apenas os países que o haviam atingido de forma mais plena, como
aqueles situados em patamares inferiores na tentativa de implementá-lo. O
resultado foi um aumento extraordinário da precarização do trabalho e dos
indicadores de piora na desigualdade social, em escala mundial e na da maioria
dos países. Recuperar as condições de dignidade no trabalho[13] é
hoje uma prioridade mundial e também brasileira, como resposta a essa regressão
histórica.
O esforço pela
implementação do trabalho decente requer uma combinação de políticas públicas e
atitudes dos diversos atores sociais. Será um processo complexo, mas sua
realização é plenamente possível, como mostram as ações e diretrizes sugeridas
neste artigo. E as iniciativas já adotadas em diferentes níveis da federação
brasileira indicam que já passamos da palavra à ação. Resta ampliar e
generalizar tais iniciativas, com a convicção de que não existe destino
previamente traçado, nem o retrocesso social é uma inevitabilidade histórica.
Essa convicção já se manifestou reiteradamente nesta década e deve se
consolidar na atividade cotidiana de todos os atores sociais e políticos do
País.
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2008. Disponível em:
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Trabalho doméstico: desafios para o trabalho decente. Revista de Estudos Feministas, vol. 17, nº 3, Florianópolis,
set./dec. 2009.
[1] Roberto
Vital Anau é Economista e Mestre em Urbanismo pela USP. Atualmente é membro da
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do
Campo e Professor da UniSantanna. Ex- dirigente sindical bancário. Contato: roberto.vital@saobernardo.sp.gov.br
ou rovitan@ig.com.br
.
[2] Jefferson
José da Conceição é Economista (UFRJ), Mestre em Administração (IMES) e Doutor
em Sociologia (USP). É o atual Secretário de Desenvolvimento Econômico,
Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo. É Professor da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul (USCS).
Foi assessor do DIEESE e da CUT. Contato: jefferson.jose@saobernardo.sp.gov.br
ou jefersondac@ig.com.br .
[3] Para uma
recuperação do debate sobre o conceito de trabalho decente no âmbito da OIT,
ver ILO (2000 e 2007), DHARAM (2006) e QUEVEDO (2008). Por sua vez, a recuperação da evolução do
tema no Brasil, em particular à luz da posição do governo brasileiro, ver
MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (2004, 2006 e 2007).
[4] A bandeira
do trabalho decente tem como pano de fundo um quadro social alarmante de
desemprego e pobreza. Havia
aproximadamente 195 milhões de desempregados no mundo em 2005. Por sua vez,
cerca de metade de todos os ocupados (1,4 bilhão de pessoas) vivia com menos de
US$ 2 por dia. Outro ambiente marcante que guarda forte relação com a defesa do
trabalho decente por uma instituição como a OIT é a precarização das relações
de trabalho, que vai desde as modalidades degradantes do trabalho, como são os
casos do trabalho escravo e do trabalho infantil, até a difusão das formas de
contratação com nenhum ou com baixo grau de proteção previdenciária,
benefícios, remuneração e demais direitos trabalhistas.
[5] Ninguém
ignora, por exemplo, a genealogia da Internet, que remonta exatamente à
necessidade de salvaguardar informações secretas de forma descentralizada por
parte das autoridades estadunidenses.
[6] Memorando NSC-68 do Conselho de Segurança
Nacional dos EUA. Ver a respeito Fusfeld (2001, pp. 217-219).
[7]
Uma boa discussão das razões dessa aparente invencibilidade, em crítica parcial
a Hobsbawm (2002), é feita por Letizia (s.d).
[8]
Para uma análise desses processos sob o enfoque jurídico, ver Brito Filho
(2010).
[9]
Entre outras oportunidades abertas pela retomada do crescimento econômico,
combinada com o diálogo social, está a melhor repartição dos ganhos de
produtividade. De acordo com o IBGE, a produtividade do trabalho teve
crescimento de 84% entre 1988 e 2008. No mesmo período, o rendimento médio
sofreu uma retração de 37%.
[10]
A perspectiva sindical, em particular da maior central sindical do Brasil, a
Central Única dos Trabalhadores (CUT), pode ser obtida a partir da leitura de
DAU (2010 a; 2010 b).
[11]
Para o debate específico do trabalho decente no meio rural, ver GAMA (2006).
Sobre a importância do tema do trabalho decente no trabalho doméstico, ver
SANCHES (2009).
[12]
A Região do ABC, que fica na Grande São Paulo, reúne sete municípios: Santo
André, São Bernardo do Campo, São Caetano, Diadema. Mauá, Ribeirão Pires e Rio
Grande da Serra.
[13]
Para uma discussão conceitual e uma recuperação histórica do conceito de
dignidade no trabalho, ver Gosdal, s/d.
*Artigo publicado na Revista da Faculdade de Administração e Economia, v.2, n.2, p.44-68, 2011.