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segunda-feira, 18 de julho de 2016

O SOM DO APITO E A REVITALIZAÇÃO DE ÁREAS INDUSTRIAIS DEGRADADAS

Jefferson José da Conceição

Regiões como o ABCD Paulista e Bairros paulistanos como Barra Funda, Luz, Brás, Mooca e Ipiranga – apenas para citar exemplos bem próximos – foram marcados de maneira profunda no século XX pelo ambiente fabril. No Brasil, ainda que em escala menor, há outras áreas com configurações semelhantes, como é o caso da zona portuária do Rio de Janeiro. Internacionalmente, há também, claro, várias áreas que de igual modo foram palco da industrialização no século XX. Uma delas é a Região do Vale do Ruhr, na Alemanha, experiência da qual falaremos rapidamente mais adiante.

Todas elas passaram pelo impacto das mudanças vivenciadas pela indústria desde as últimas décadas do século XX até hoje, e que, em muito dos casos, representou o fechamento de fábricas e a geração de “vazios urbanos”, isto é, largas áreas degradadas compostas por antigas indústrias desativadas.

Revitalizar estas áreas, por meio do restauro e preservação do patrimônio histórico combinada com a constituição de novas atividades produtivas e de serviços avançados, bem como de entretenimento, cultura e lazer, é tarefa essencial a ser assumida pelo setor público em parceria com o setor privado.   

1 Apito, macacão e graxa
Voltemos aos casos do ABCD Paulista e dos mencionados bairros da capital paulista.

Para os moradores e para os que trabalhavam nestas regiões até o fim do século passado, os apitos das fábricas estavam entre os símbolos que mais os faziam se sentir “em casa”. Por meio dos apitos, criou-se uma identidade entre o cidadão e o território. Seus sons agudos, tocados em tons crescentes durante alguns longos segundos para depois irem sumindo aos poucos, cortavam os ares do entorno em horários rigorosos no período da manhã, da tarde e da noite. Os apitos representavam a mensagem de que havia chegado o momento de ir para o batente, do intervalo para a refeição ou de ir embora para casa. 

Em diferentes momentos do século XX, a fábrica e o operariado constituíram-se em sinônimos quase 
naturais destas regiões. Além dos apitos, a lembrança imediata era a dos operários em seus uniformes com graxa em sincronia de movimentos com máquinas, engrenagens e linhas de produção. Nestas áreas, foram fortes as marcas da cultura do trabalho e da organização sindical, legados da imigração do final do século XIX e início do século XX, que se mesclaram aos valores trazidos pela migração interna na segunda metade do século XX.

Tanto para aqueles que viviam nestas regiões, quanto para os que as percebiam “de fora”, as fábricas estavam sempre “vivas”, em funcionamento frenético. Havia, sim, a possibilidade de retração da produção, em função dos movimentos cíclicos do sistema capitalista e de crises episódicas geradas pelas políticas econômicas nacionais. Mas estas crises logo eram seguidas por etapas de expansão do processo produtivo e dos investimentos. A fábrica sempre voltava a funcionar a pleno vapor. 

2 Fechamento de fábrica e melancolia

O forte entrelaçamento entre história da industrialização e cotidiano da vida das pessoas é uma das razões pelas quais nestas regiões parece ser maior a melancolia do fechamento de fábricas. Fechamento este, registre-se, que é intenso em virtude do processo de reestruturação industrial das últimas décadas. No caso dos bairros paulistanos, o processo começa já em meados do século XX. Na Região do ABCD Paulista, isto se dá a partir especialmente da reestruturação produtiva e das políticas governamentais draconianas dos anos de 1980 e 1990. A exceção ocorreu durante os Governos Lula e parte do Governo Dilma, quando a indústria, no ABCD e no país como um todo, viveu processo de retomada da produção, investimentos e empregos.

 Um metalúrgico de uma empresa chamada FIC, ao se referir ao último dia de produção da fábrica no ABCD no começo da década de 1990, disse: “fiquei sabendo que teve gente chorando ontem” (Folha de São Paulo, 2/10/1991).  Outra narrativa que mostra essa relação entre o encerramento de fábrica e o sentimento de tristeza foi a que fez o jornalista Ademir Médici em matéria para o Diário do Grande ABC (em 8/6/2000): “Retornar à fábrica e caminhar pelos mesmos pátios internos cobertos de mato e lixo e observar apenas as velhas estruturas de ferro, sem telhas e paredes laterais, vazios, praticamente no centro de Santo André, neste crepúsculo do milênio. Esta experiência foi vivida mês passado, pelo sindicalista e memorialista Philadelpho Braz. A emoção tomou conta do seu coração”.

3 “Vazios urbanos”: degradação, prostituição e drogas

Nas últimas décadas, têm crescido, nas regiões de tradição industrial de diversos países, “vazios urbanos” gerados por processos de relocalização ou “desindustrialização”. Não há na língua portuguesa terminologia exata para designar estes vazios urbanos. Em francês, elas são denominadas de “friches urbaines” ou “friches industrielles”.

Esses vazios correspondem a terrenos ou prédios ainda não demolidos de antigas fábricas, em pleno meio urbano. São espaços desocupados ou subocupados, construídos ou não, anteriormente ligados à atividade industrial.

Alguns desses prédios, localizados muitas das vezes em áreas centrais da cidade, representam massa falida, com pendências judiciais como pagamento de débitos trabalhistas e dívidas com fornecedores, o que torna mais difícil sua venda e reutilização para outros fins.

Em geral, essas áreas são associadas à imagem de degradação, isto é, áreas de insegurança, marginalidade, vandalismo, tráfico de drogas, assassinatos, depósitos de lixo, etc. Esses prédios e terrenos - que sobram do que antes era uma fábrica - têm sido ocupados com frequência por segmentos excluídos da sociedade (prostitutas, mendigos, drogados e menores delinquentes). Trata-se de um dos símbolos mais duros da decadência de uma localidade que antes era tomada como “terra de oportunidades”.  

Por falta de manutenção, também são negativos os efeitos visuais que estes vazios urbanos geram.
Apesar das diversas dimensões do fenômeno – social, cultural, geográfico, arquitetônico etc – ainda são poucos os estudos e planos no Brasil sobre os vazios urbanos. Isto mostra que o fenômeno é relativamente recente no País. No caso do ABCD, não há, segundo se pôde apurar, levantamento sistemático destas áreas. A rigor, este levantamento deveria ser realizado pelas Prefeituras.

Matéria do Diário do Grande ABC, de 2/10/2005, levantou como exemplo 12 grandes áreas vazias de antigas fábricas na Região do ABC. As fábricas e seus municípios eram: em São Caetano: Coferraz (antiga siderúrgica), Cerâmica São Caetano, Indústrias Matarazzo (ramo químico); em Santo André: Nordon (estruturas metálicas), Pierre Saby (estruturas metálicas), Cortiris (cortiças), Fichet (estruturas metálicas), Vila América (têxtil), IAP Copas (fertilizantes), Ouro Verde (fertilizantes); em São Bernardo do Campo: Tognato (têxtil), Indústrias Matarazzo (químico).

4 De galpões abandonados aos shoopings, hipermercados e fast foods

Quando não se veem os vazios, observa-se, naquelas áreas, a instalação de shopping centers, hipermercados, franquias de fast food, redes de locadoras etc, no qual os salários representam entre 30% e 50% dos valores pagos na antiga fábrica, é baixa a geração de tecnologia e reduzido o nível de demanda em relação aos fornecedores locais. Não são poucos os casos em que as fábricas dão lugar também às novas igrejas que admitem arquiteturas menos ortodoxas. Em outros, constroem-se prédios residenciais.

Infelizmente, nestes novos empreendimentos, não se percebe, em geral, qualquer preocupação em respeitar uma “arqueologia da indústria”, que busque preservar os traços históricos das antigas fábricas. São raríssimos os casos de investimentos de revitalização desses prédios, visando o seu reaproveitamento em novas atividades fabris, espaço de atração de serviços avançados ou entretenimento e lazer.

Um exemplo emblemático, porque a área se constituiu em logradouro de grande atividade industrial no passado, é a Avenida Industrial, em Santo André. Antes, a área tinha atividade predominantemente fabril – como o próprio nome indica. Hoje, os galpões industriais cedem espaço a novos empreendimentos (como o ABC Plaza Shopping, inaugurado em 1997, em área que pertenceu à indústria de eletrodomésticos Black & Decker), mas não há uma preocupação de salvaguarda mínima da rica arquitetura existente.

5 Restaurar e preservar o Patrimônio histórico e dar novas funcionalidades às antigas áreas industriais degradadas

No Brasil é quase nulo o número de prédios que são restaurados e protegidos por órgãos oficiais de preservação do patrimônio histórico ou pela iniciativa privada, o que ameaça o resgate da própria história da industrialização no País.

Especialistas apontam a existência de não mais do que 30 fábricas ou construções similares tombadas pelos organismos oficiais em todo o País. Deste grupo de empresas, são raras as que conseguem, de uma ou outra forma, preservar dentro dos estabelecimentos parte das máquinas, com vistas a resgatar o modo de produção ali vigente.

Esta ausência de preocupação foi um dos motivos do desaparecimento dos engenhos da produção de açúcar no século XVI. Hoje ela atinge as fábricas do século XIX e XX, em setores diversos como o têxtil, de alimentação, metalúrgico e naval.

Um exemplo simbólico, já que se trata de um marco da industrialização brasileira, é o caso dos 
prédios das Indústrias Matarazzo, construídos em cerca de 30 cidades do Estado de São Paulo, no século XX. A maioria desses prédios das Indústrias Matarazzo está hoje abandonada ou demolida (como a fábrica de alimentos Petybon, no bairro da Lapa). Há casos, como no bairro do Brás, em São Paulo, em que a unidade da empresa Matarazzo foi reaproveitada, tornando-se parte dela em sede da Central Única dos Trabalhadores (CUT), e a outra parte, em igreja pentecostal.

Uma tendência adotada em diversos países europeus é a transformação dos estabelecimentos de maior valor histórico em áreas revitalizadas nas quais se incentiva a instalação de serviços avançados e de maior tecnologia: parques tecnológicos, incubadoras de start ups, laboratórios de pesquisa, empresas de comunicação, marketing, serviços financeiros, entre outros.

Há também experiências nos quais as velhas estruturas fabris, junto com as indústrias em atividade e mais as estações ferroviárias, usinas hidrelétricas e vilas operárias, compõem projetos de cultura, entretenimento e “turismo industrial”.

Na Região do ABCD, há poucos exemplos de reaproveitamento desses prédios para atividades não fabris. Algumas dessas poucas iniciativas poderiam ter maior visibilidade e serem mais valorizadas pela comunidade, se houvesse o devido investimento na revitalização dos prédios.

6. A experiência do Ruhr, na Alemanha 

Regiões como Sheffield, Liverpool, Manchester e Cardiff (Reino Unido), Detroit (EUA), e Vale do Ruhr, na Alemanha, estão entre algumas das mais conhecidas pelo grande volume de atividades industriais, fábricas e empregos que chegaram a nuclear. Falemos um pouco sobre esta última, o Vale do Ruhr.

Localizada no centro do estado da Renânia do Norte-Vestfália, acompanhando o leito do rio Ruhr, o Vale do Ruhr (Ruhrgebiet, em alemão) é a região mais populosa da Alemanha. Formada por várias cidades (embora não se constitua em unidade político-administrativa), é também a região de maior densidade industrial do país e da própria Europa. Semelhante ao verificado na Grande Detroit, o modelo de produção fordista gerou elevados investimentos na indústria pesada, que resultou em grandes fábricas siderúrgicas, químicas e de mineração.

A Região do Ruhr sofreu bastante com as mudanças trazidas no processo industrial, que tiveram como consequência o desemprego, problemas ambientais e abandono de fábricas, prédios e galpões na região. Mas a região vem conseguindo se revitalizar.

O projeto de revitalização iniciado ao final da década de 1980 busca preservar a rica história da região. Procura-se a transformação das antigas áreas para que estas tenham novos usos combinado a projetos urbanísticos. A ideia é associar a região a uma imagem mais sustentável e ecológica. O projeto do Emscher Park promove diversas parcerias envolvendo o setor público e privado.  Ao lado de investimentos pesados na constituição de espaços verdes em meio às antigas unidades fabris, a estratégia consiste em estimular novos usos da área, especialmente por meio da instalação (muitas vezes com subsídios) de empresas de comunicação, internet, design, moda, turismo, centros de convenções e museus, bem como da realização de vários eventos culturais.

O site do Projeto de revitalização do Vale do Ruhr sintetiza o plano:

“Especificamente, os dois principais objetivos são (...) dar à região uma imagem mais verde e dar às plantas industriais tradicionais mais “vida” (...). Crucial para a reconstrução foi o Parque Paisagístico Emscher que atuaria como um "conector verde" entre os assentamentos do Vale do Ruhr, seguindo o caminho do rio Emscher (...). Além de conectar as 17 cidades localizadas ao longo do vale do rio, este novo corredor leste-oeste une diversas cidades, mas expandindo alguns cinturões verdes no sentido norte-sul. O parque é composto de campos arbóreos regenerados, florestas recuperadas, áreas de lazer existentes e que, juntos, oferecem um conjunto coeso de infraestrutura verde para toda a região. Os projetos específicos criaram o sistema de parque, variando entre o desenvolvimento de grandes áreas de terras de plantio e desenvolvimento imobiliário. Hoje, o distrito de Ruhr-Emscher é envolto por uma bela cortina verde que ocasionalmente inclui um marco histórico industrial (...) rodeado por árvores. O plano para a região orienta o uso das instalações industriais abandonadas, de modo a melhorar a qualidade das áreas degradadas em torno delas e movimentar a economia, fazendo uso da infraestrutura existente. Um dos galpões mais conhecidos era o da indústria da Coca-Cola que hoje abriga em suas estruturas maciças uma coleção de arte, cultura, habitação, comércio e escritórios. Concertos e shows também acontecem nos quadros de aço das antigas fábricas. Áreas verdes de lazer, com trilhas para caminhadas e paredes de escalada, foram esculpidas a partir das colinas antigas de estacas de carvão. Caminhos através de clareiras das árvores que ligam os diversos componentes do parque seguem as antigas estradas industriais e linhas ferroviárias”.

Matéria da Folha de São Paulo, de 24/9/2006, escrita por Raul Juste Lores, também faz um importante relato sobre a revitalização do Vale do Ruhr:

"Até para recuperar a auto-estima da região, a primeira ideia foi justamente restaurar as fábricas abandonadas, que eram a nossa cara, e dar-lhes novas funções" (disse à Folha Irmgard Schiller, coordenadora do projeto Bismarck, de recuperação industrial de Gelsenkirchen). O maior símbolo desse renascimento é Zollverein, em Essen, tida como a fábrica mais bela da Europa e declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Inaugurada em 1932, foi desenhada por dois arquitetos da Escola Bauhaus, pioneira do modernismo. Zollverein vem ganhando diversas novas funções depois de um plano diretor concebido por Rem Koolhas, vencedor do Pritzker, o Nobel da arquitetura, em 2000. Nos últimos sete anos, os governos alemão e regional e a União Européia investiram 110 milhões para recuperar o complexo. Ali, foi instalada a maior pista de patinação da Europa, além de piscinas públicas, restaurantes, teatro e centros para exposições. Um museu interativo de ciências foi inaugurado no ano passado para atrair escolas de toda a Alemanha. Por toda a região, foi criado um cinturão verde, uma sucessão de parques horizontais por 400 km que praticamente ligam todas as cidades. O principal deles é o Parque Norte, em Duisburg, que aproveitou fornos e as minas abandonadas da antiga siderúrgica da Thyssen”.

Por fim, cabe registrar que esse artigo é uma versão adaptada e atualizada de trechos da minha tese de doutoramento, intitulada “Quando o apito da fábrica silencia: sindicatos, empresas e poder público diante do fechamento de indústrias e da eliminação de empregos na Região do ABC”. 

Posteriormente, parte deste estudo serviu de base para o livro que, com o mesmo nome, lancei, em 2008, pela Editora ABCDMaior. A edição do livro está esgotada, mas é possível ter acesso às íntegras da tese e do livro em http://blogjeffdac.blogspot.com


Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS e Atual Diretor Técnico da Adesampa. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre janeiro de 2009 e julho de 2015. Foi Diretor-Superintendente do SBCPrev entre ago.2015 e fev.2016.

Artigo publicado no site do ABCDMaior (www.abcdmaior.com.br), na coluna blogs, em 18/7/2016.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

NA CONTRAMÃO DAS 80 h


Jefferson José da Conceição

Na contramão da recente proposta feita pelo Presidente da CNI, este artigo não apenas se posiciona frontalmente contra qualquer incremento da jornada de trabalho no Brasil, como defende a redução da jornada semanal; a redução e limitação das horas extras; o controle e redução da jornada anual de trabalho.

Em tempos de retrocesso, que tem como pano de fundo a onda conservadora que veio junto com o impeachment da Presidenta eleita Dilma Rousseff, o Presidente da Confederação Nacional da Indústria, Robson Braga de Andrade, declarou, em reunião de lideranças da “Mobilização Empresarial pela Inovação” com o Presidente interino Michel Temer, realizada em 8/7/2016, que o governo deveria adotar "medidas muito duras" na Legislação Trabalhista e na Previdência Social. O objetivo seria promover o equilíbrio das contas públicas e aumentar a competitividade das empresas. Com isto o Presidente da CNI já definiu quem tem que “pagar o pato”: os trabalhadores assalariados.
Manuseando informações equivocadas, incompletas e sem qualquer contextualização, o Presidente da CNI, inadvertidamente, utilizou o caso da França, dizendo que, após as reformas trabalhistas, hoje é permitido naquele país trabalhar até 80 horas por semana.

O Presidente da CNI não mencionou que a jornada de trabalho na França é de 35 horas por semana! O limite máximo – já computadas as horas extras – é de 48 horas por semana, não ultrapassando 10 horas de trabalho por dia.  Medida recente do Governo francês autoriza que, excepcionalmente, em alguns casos, a jornada semanal alcance as 60 h semanais. Contudo, é necessário que a autoridade administrativa autorize esta jornada. Ainda assim, a medida sofreu séria oposição e protestos de grande parte da sociedade francesa. Portanto, a realidade está longe do afirmado pelo Presidente da CNI. 

Creio que o Presidente acaba de reabrir o debate da jornada de trabalho. Só que o feitiço pode voltar-se contra o feiticeiro: mesmo em um cenário de retrocessos, as propostas podem correr na contramão do proposto por aquela entidade empresarial.

Registre-se também que, vinda da “Mobilização Empresarial para a Inovação”, a proposta do Presidente da CNI não é nada “inovadora”. Os segmentos mais atrasados do empresariado recorrentemente propõem a ampliação da jornada de trabalho.

Neste sentido, creio ser bem oportuno, nos parágrafos a seguir, reproduzir, com ajustes e atualizações, artigo elaborado por mim, em parceria com Ilmar Ferreira da Silva e Patrícia Toledo Pelatieri, publicado no livro “Hora Extra: o que a CUT tem a dizer sobre isto” (disponível como e-book na internet). O artigo, intitulado “Hora extra e estratégia sindical”, foi escrito em 2006, mas permanece atualíssimo, sendo um bom contraponto, inclusive, às declarações recentes do Presidente da CNI.

A LUTA HISTÓRICA DOS TRABALHADORES PELA REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO

A luta do movimento sindical internacional pela redução do tempo de trabalho é travada em várias frentes:
·        
redução da jornada diária, semanal, mensal,  semestral e anual;
·         aumento dos dias de descanso, férias e feriados;
·         limitação das horas extras;
·         ampliação das licenças por acidente de trabalho, maternidade e paternidade;
·         elevação da idade de ingresso do jovem no mercado de trabalho;
·         antecipação da aposentadoria.
Ao longo do século XX, em diversos países do mundo, a classe trabalhadora obteve conquistas em vários destes fronts de batalha. Como resultado, a jornada anual, de acordo com pesquisa da OCDE, caiu, entre 1890 e 1986, de 2770h para 1573h na França; de 2765h para 1627h  na Alemanha; de 2770h para 2099 no Japão; e de 2789 para 1683 nos EUA (fonte: Nouvelles Technologies, OCDE, 1988).
AS DÉCADAS DE 1980 E 1990: RETROCESSO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, COM A CONSEQUENTE AMPLIAÇÃO DA JORNADA
Contudo, a partir dos anos de 1980, com a expansão do desemprego e a implantação gradativa de formas de trabalho mais precárias, estes avanços desaceleraram. Verificaram-se até mesmo riscos de retrocessos, como apontaram as fortes pressões das representações empresariais e de vários governos europeus (como a Alemanha, a Inglaterra, a França e a Espanha), que buscaram criar mecanismos para aumentar a jornada semanal de trabalho e reduzir o custo da hora extra. A alegação era de que estas conquistas representariam “inflexibilidades” do mercado de trabalho desses países, que acabavam por reduzir a competitividade dos produtos europeus.
Esta busca da flexibilização aconteceu justamente em um momento em que o mercado europeu, como de resto de todo o mundo, sofreu com a competição dos produtos de novos países emergentes, como a China, que se caracterizam por elevadas escalas de produção e baixos custos de trabalho.
OS EFEITOS DAS HORAS EXTRAS SOBRE A SAÚDE DOS TRABALHADORES
Há consenso entre os especialistas da área da saúde do trabalho quanto aos efeitos danosos de jornadas longas e das horas extras sobre a saúde e o bem-estar físico e psíquico dos trabalhadores. Diversos estudos no Brasil e no exterior já correlacionaram jornadas de trabalho excessivas e cansaço, estresse, problemas cardíacos, dores musculares e ósseas, infecções crônicas, entre outras enfermidades e lesões.
Apenas a título de ilustração, tome-se o estudo da Escola de Medicina da Universidade de Massachusetts, com base no acompanhamento de cerca de 110 mil empregos nos EUA (...). De acordo com este estudo, os empregados que realizam muitas horas extras possuem, em função do estresse e da fadiga, 61% mais probabilidade de sofrer lesões ou adquirirem doenças associadas com o trabalho do que aqueles que não realizam jornadas longas. Dos 110.236 empregos analisados, verificou-se um total de 5.139 lesões ou enfermidades. Mais de 50% desse total de incidência decorreram de jornadas longas de trabalho ou de horas extras.
É também conhecido que, a partir de determinado ponto do processo de trabalho, existe uma relação inversamente proporcional entre jornadas longas e produtividade/qualidade.
No caso brasileiro, as horas extras constituem-se também em fator de motivação de uma grande quantidade de processos trabalhistas. Os autores deste artigo desconhecem quantificações do volume de recursos envolvidos nestes processos trabalhistas. Caso efetivamente não existam, registre-se nossa sugestão para que as Centrais Sindicais realizem um diálogo com o Judiciário, com o objetivo de construir indicadores.
Em termos macroeconômicos, jornadas longas e horas extras em níveis abusivos resultam em impactos negativos que agravam o quadro de desemprego em todo o mundo. Estimativas da OIT, OCDE, ONU e outras instituições internacionais apontam para um total de mais de 180 milhões de desempregados no mundo.
A FLEXIBILIDADE DO TEMPO DE TRABALHO NO BRASIL
A implementação de um conjunto de ações sindicais, visando a efetiva redução da jornada normal e do excesso de horas extras é prioridade ainda mais urgente em um país como o Brasil, no qual o tempo dedicado ao trabalho vai além da já alta jornada legal máxima de 44 h semanais, permitida atualmente pela Constituição Federal. Tome-se o caso do tempo de trabalho utiliza para o transporte da residência ao trabalho (horas in itinere). Em nosso país, quando se computa este tempo de transporte, a jornada pode ser acrescida em dezenas de horas a mais.
Se, por exemplo, um trabalhador necessita entre uma hora e meia e duas no deslocamento de sua casa até o local de trabalho, e o mesmo tempo para voltar para a sua casa, ele tem semanalmente uma jornada adicional, para além do permitido pela Constituição, de 15 a 20 horas. Neste exemplo, a jornada semanal pode chegar a 64 horas semanais. Isto, mesmo que o trabalhador não faça nem uma hora extra na semana.
Em que pese o detalhamento da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) no que se refere ao tema da jornada de trabalho, é grande a flexibilidade das empresas para poderem dispor do tempo de trabalho dos trabalhadores. A começar pelo fato de que, como dito, a jornada normal de trabalho de 44 h semanais já é em si mesma bastante elevada. Esta extensa jornada legal deriva, em grande medida, do fato de que o país ficou período demasiadamente longo (de 1934 a 1988) estacionado na jornada legal máxima de 48 h semanais.
É verdade que algumas categorias já haviam conquistada a redução dessa jornada máxima. Em 1985, algumas categorias, especialmente do setor industrial, realizaram intensa mobilização (que envolveu diversas greves) para a redução da jornada de trabalho, resultando em acordos coletivos que reduziram a jornada para 45 horas, e em alguns casos até mesmo as 40h semanais. Esta mobilização histórica foi um dos fatores decisivos para a posterior decisão da Constituinte em reduzir a jornada constitucional para as 44h semanais (...).
A redução constitucional da jornada máxima para patamar inferior a 44 h semanais fixada em 1988 continua como uma bandeira do movimento sindical brasileiro, embora, uma vez mais, categorias já tenham alcançado jornadas inferiores a este nível. A meta é a jornada constitucional máxima de 40h semanais.
Entretanto, o manejo do tempo de trabalho pelos empregadores no Brasil é ainda mais elástico, tendo em vista que os empresários podem se valer, também, das horas extras e do mecanismo do banco de horas. No caso deste último instrumento, cabe dizer que, introduzido em lei pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1988, ele é bem diferente dos acordos também chamados de banco de horas realizados por algumas categorias (...).
OS ACORDOS DE FLEXIBILIZAÇÃO E REDUÇÃO DA JORNADA REALIZADOS PELO SINDICATO DOS METALÚRGICOS DO ABC
Os acordos desta categoria são anteriores à própria lei do Governo FHC e envolvem a contrapartida da redução da jornada semanal média, a manutenção do nível de remuneração e emprego e o compromisso de novos investimentos na empresa. Por exemplo, no final de 1995, foi firmado acordo entre o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e a multinacional Ford, no qual se estabeleceu uma flexibilidade do tempo de trabalho, com a jornada variando entre 36h e 44 h semanais. Em contrapartida, a jornada média caiu de 44 h para 42h semanais. Acordo semelhante foi estabelecido com a Volkswagen em 1996, pela primeira vez com a constituição de um “banco de horas”, para regular créditos e débitos das horas trabalhadas em relação à nova jornada média.
Cabe mencionar também outras medidas relativas ao tempo de trabalho que, no final dos anos de 1990, contribuíram para uma flexibilização no sentido da precarização do mercado de trabalho brasileiro. São os casos do contrato por jornada parcial (1998) e da liberalização do trabalho aos domingos, sem a necessária negociação coletiva (2000).
AS HORAS EXTRAS E OS CÁLCULOS DO VOLUME E CUSTO DECORRENTES DA APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A legislação das horas extras é também bastante flexível. A CLT, em seu artigo 59, permite nada menos que 2 horas extras por dia, desde que pago um adicional obrigatório de pelo menos 50% superior à hora normal, como consta na Constituição Federal (art. 7, XVI).
A partir de uma leitura ao “pé da letra”, elaboramos os cálculos que se seguem, que estimam o potencial de horas extras e de jornadas anuais “permitidos” pela CLT.
O volume potencial implicitamente “permitido” pela legislação brasileira é de 552 h extras por ano (sem considerar as horas extras realizadas nos feriados e domingos).
Suponhamos um trabalhador que trabalha sob o regime da jornada de 44h semanais e faz 2 horas extras por dia todos os dias.  Este trabalhador tem uma jornada potencial de 2.568 h de trabalho (2.016,67 h normais mais 552 horas extras potenciais). Se sua jornada semanal contratada é de 42 horas, ele tem uma jornada anual potencial de 2.477 h. No caso de sua jornada contratada ser de 40h, a jornada potencial é de 2.385,33h.
Por sua vez, o adicional obrigatório de pelo menos 50% sobre as horas extras não é suficiente para impedir a sua realização. Os custos do trabalho no Brasil são baixos, tanto nas pequenas, médias e grandes empresas. Isto faz com que, mesmo depois de aplicados o adicional mínimo de 50% (ou percentuais superiores negociados em acordos coletivos, como 75%, por exemplo), os custos do trabalho continuem pequenos.
De acordo com cálculos da Subseção DIEESE da CUT Nacional, realizados em 2006, o custo – quando o adicional sobre a hora extra é de 50% - é de aproximadamente 0,96% da receita líquida nas pequenas empresas, de 0,63%, nas médias e 0,55%, nas grandes. Se o adicional é de 75% sobre a hora normal, o custo passa a ser de 1,12% da receita líquida nas pequenas, 0,73% nas médias e 0,64% nas grandes empresas.
O custo anual estimado com o pagamento de horas extras no Brasil é de pelo menos R$ 6,1 bilhões (considerando-se que todas as empresas paguem um adicional de 50%), ou 0,63% do faturamento líquido. Um aumento do adicional para 75% sobre o valor da hora normal representaria um custo adicional da ordem de R$ 1 bilhão.
A BAIXA EFICÁCIA DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA PARA COIBIR AS HORAS EXTRAS
Posto estes cálculos, voltemos à questão da baixa eficácia da legislação atual. Acrescente-se que há também muitos casos em que as horas extras não são computadas, em claro desrespeito ou anuência do trabalhador, já que este está permanentemente pressionado pela necessidade da manutenção do emprego. A isto se soma o baixo, quando não inexistente, poder de pressão da maioria dos sindicatos brasileiros para fazer com que as empresas cumpram a lei.
Um elemento cada vez de maior peso entre os fatores explicativos da baixa eficácia da legislação trabalhista brasileira é que as jornadas longas e as horas extras não pagas estão intimamente associadas com a crescente precarização e informalização do mercado de trabalho brasileiro. Em nosso país, dos 49,1 milhões de assalariados em 2003, um total de 18,6 milhões de pessoas (37,8%) não tinha carteira de trabalho.  Logo, um grupo enorme de trabalhadores está desprovido de qualquer direito dos previstos na legislação. Em regiões como Centro-Oeste, Norte e Nordeste, 40,5%, 49,1% e 51,8% dos assalariados não têm carteira. Além disso, a expansão dos terceiros e das formas de contratação precárias (como o trabalho temporário e os estagiários), que se caracterizam pelos salários mais baixos e jornadas mais longas, contribuem para deteriorar ainda mais o próprio perfil dos assalariados com carteira de trabalho.
O quadro de desemprego e de precarização do mercado de trabalho gera também uma outra dimensão em relação ao fenômeno das horas extras: a de que o trabalhador, em determinados momentos, realiza as horas extras, não como parte de um acordo prévio com seu empregador (como prevê a legislação), em um ato de livre manifestação de vontade das partes, mas por temer a perda do emprego como represália da empresa a uma eventual negativa do empregado.
Já na visão das empresas, as horas extras, além do baixo custo já mencionado, permitem - em um contexto de incertezas, oscilação e instabilidade da demanda - rápido aumento da produção quando necessário (isto é, diante de um aquecimento momentâneo do mercado, encomendas inesperadas ou infortúnios do processo produtivo), sem que isto obrigue a geração de novos empregos.
Por fim, não se pode deixar de notar que, não raro, é o próprio trabalhador que demanda a realização de horas extras, como forma de complementação dos seus baixos rendimentos.
A EVOLUÇÃO DAS HORAS EXTRAS
Apesar do fenômeno das horas extras ser uma constante da realidade brasileira desde os primórdios do trabalho assalariado no Brasil, não há ainda uma pesquisa nacional periódica que, detalhadamente, meça o volume das horas extras, suas causas, consequências, volume por setor etc. Todavia, mesmo com os dados existentes, é possível afirmar que este é um problema que deve ser urgentemente encarado por parte da sociedade brasileira.
Se as horas extras não forem controladas, corre-se o risco de, em caso de alcançada a meta da redução constitucional da jornada de 44 horas para 40 horas semanais, o nível de emprego não se ampliar significativamente. Esta suspeita fundamenta-se no passado recente do mercado de trabalho brasileiro. Logo após a redução da jornada de trabalho na Constituição de 1988, de 48 para 44 horas semanais, observou-se um forte crescimento do percentual de trabalhadores que praticavam horas extraordinárias.
Entre 1985 e 1988, a média de assalariados (da indústria, comércio e serviços) na Grande São Paulo que trabalhou além da jornada legal ficou entre 26% e 27%. Contudo, logo no ano de 1989, após entrar em vigor a nova Constituição, o percentual dos que trabalharam acima da jornada legal subiu para 42,6%, e manteve uma tendência crescente desde então. No ano de 2004, um total de 45,6% trabalhou acima da jornada legal. Em outras palavras, pelo menos 4 em cada 10 trabalhadores faziam horas extras acima da jornada legal.
Constata-se ainda que, quando se analisa por setor de atividade, a indústria e os serviços acompanharam de perto a média geral dos assalariados. Na indústria, o percentual dos que trabalham acima da jornada legal subiu de 21,4% em 1988 para 42,0% em 1989 e 44,2% em 2004. Nos serviços, de 25,5% em 1988 para 36,7% em 1989 e 40,9% em 2004. Já o comércio se destaca pelo fato de que a grande maioria dos empregados tem trabalhado nos últimos anos acima da jornada legal. Este contingente de trabalhadores sobe de 43,1% em 1988 para 57,5% em 1989 e 63,1% em 2004.
Assim, no ano de 2004, na Região Metropolitana de São Paulo, enquanto a jornada média da indústria foi de 43,8 horas semanais e nos serviços, 42,8 horas, a jornada média no comércio foi de nada menos que 48,2 horas. Em outras palavras, a jornada média efetiva neste segmento é inclusive superior à jornada de 48 horas, que legalmente deixou de vigorar no Brasil a partir da Constituição de 1988.
As horas extras representaram, assim, no período, um recurso das empresas para compensar a redução da jornada para 44 horas semanais, contornando em boa medida a necessidade de novas contratações. Ademais, elas têm sido largamente utilizadas em momentos de retomada da atividade econômica, o que acaba reduzindo os impactos positivos do crescimento na geração de novos postos de trabalho.
POR UMA NOVA ESTRATÉGIA SINDICAL E UMA NOVA LEGISLAÇÃO
A consequência prática de tudo o que foi exposto é que a estratégia do movimento sindical frente à questão das horas extras, no Brasil, necessita ganhar um novo enfoque. A meta de longo prazo, do nosso ponto de vista, deve permanecer a mesma, isto é, a luta pelo fim das horas extras, que é uma bandeira histórica do sindicalismo. No entanto, a estratégia para se atingir este objetivo em nosso país exige um ajuste no discurso e na ação do movimento sindical.
Primeiramente, é preciso que a luta do sindicalismo brasileiro pela redução da jornada constitucional de trabalho sem redução de salários esteja permanentemente associada, com o devido destaque, ao tema da eliminação do abuso no uso das horas extras. A tão almejada conquista das 40 horas semanais (em uma primeira fase, seguida das 36 horas semanais, em uma segunda fase), que é a meta da campanha unificada das Centrais Sindicais, somente resultará em efeitos positivos, em termos de saúde dos trabalhadores, lazer e geração de postos de trabalho, se o atual arcabouço que regula as horas extras no Brasil for simultaneamente modificado.
Vimos que, isoladamente, o mero aumento do adicional, nos acordos e convenções coletivas, não garante que as horas extras serão efetivamente controladas, muito embora, dependendo da especificidade das condições de trabalho em cada categoria, isto possa ocorrer.
Para que se alcance o “fim” das horas extras - bandeira histórica do movimento sindical – é fundamental a elaboração de uma estratégia que envolva etapas. Assim, entre essas estariam:
a) a realização de pesquisas periódicas (por exemplo, mensal, trimestral ou semestral), em nível nacional, regional e setorial, que mensurem com maior rigor e detalhes o fenômeno das horas extras no Brasil. O desenvolvimento da Pesquisa de Emprego e Desemprego do DIEESE – SEADE, no que se refere ao tema da jornada, é uma dessas possibilidades.
b) a partir de uma articulação construída por meio da Central Sindical, estabelecer a prioridade do tema nas campanhas salariais das diversas categorias, de forma que, orientadas a seguirem uma cláusula-referência, as categorias possam pressionar por acordos na mesma direção, ainda que com as devidas adaptações em cada caso. Esta ênfase simultânea no tema ajudaria a dar maior visibilidade e poder de pressão;
c) Com base nas propostas já apresentadas pelas diversas instâncias da sociedade brasileira em relação ao controle das horas extras, debater com órgãos e entidades como o Ministério do Trabalho, Ministério Público, TST, ANAMATRA e OAB, entre outras, a construção, na medida do possível, de um projeto comum a ser encaminhado ao Congresso Nacional;
d) Este diálogo deveria envolver também entidades empresariais, como a CNI, CNA, CNF, CNS, CNC, CNT e FIESP, entre outras;
e) A construção de uma proposta que tenha um significativo grau de adesão entre os atores sociais deve então ser sucedida do seu encaminhamento ao Congresso Nacional na forma de projeto de lei. Este projeto deve estabelecer mecanismos que efetivamente limitem as horas extras no Brasil. Entre os parâmetros que podem constar do projeto:
·         a limitação quantitativa das horas extras máximas que se pode fazer no país em determinado período de tempo (por dia, mês, semestre, ano);
·         o estabelecimento de regras para os casos em que é compulsória a contratação;
·         a revogação dos artigos de lei que permitem a realização de horas extras aos domingos aos empregados no comércio (art.6º da Lei 10.101, de dez. 2000) e do banco de horas;
·         a obrigatoriedade da negociação das horas extras realizadas nos domingos, feriados e dias já compensados, além do incremento do adicional;
·         a proibição das horas extras  para  determinados tipos de empregados, como mulheres lactantes e aposentados;
·         a criação de parâmetros eficazes de controle por parte do movimento sindical e dos órgãos públicos.
É claro que este projeto de legislação, além de ser factível diante da correlação de forças, deve ser acompanhado de amplo debate e esclarecimento dos trabalhadores, ao lado de uma necessária política de recuperação gradativa dos salários no país.

Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS e Atual Diretor Técnico da Adesampa. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre janeiro de 2009 e julho de 2015. Foi Diretor-Superintendente do SBCPrev entre ago.2015 e fev.2016. Foi economista do Dieese, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (entre 1987 e 2004) e da CUT Nacional (entre 2004 e 2009).

segunda-feira, 4 de julho de 2016

A ECONOMIA SOLIDÁRIA E O PAPEL DO PODER PÚBLICO

Jefferson José da Conceição

A economia solidária está, hoje, inserida na “outra metade” do sistema econômico. A primeira metade é aquela composta por empresas e trabalhadores que fazem parte da dinâmica e das relações capitalistas tradicionais, isto é, submetidos à compra e venda da força de trabalho e ao circuito que envolve produção, comercialização, distribuição e consumo típico de uma economia capitalista. A segunda metade é representada por um conjunto de empreendimentos que estão excluídos desta dinâmica. Neste caso, o modelo mais avançado é o da economia solidária.

1. O Papel do Poder Público Municipal em relação às “duas metades” da economia

Em ambas as partes (“metades”) da economia, os instrumentos ao alcance do Poder Público Municipal são limitados. Não está sob o domínio de uma Secretaria Municipal de Desenvolvimento (...), por exemplo, a definição da taxa de juros, taxa de câmbio, impostos (como IPI, ICMS, Imposto de Importação), taxas públicas, salário mínimo, legislação trabalhista. E não há muita margem para políticas de incentivo tributário, tendo em vista a necessidade de gastos em serviços públicos vitais à população. Isto não significa que não há o que fazer.

No caso das empresas inseridas no circuito capitalista clássico acima mencionado, cabe à gestão pública exercer o papel de articuladora visando formar redes de cooperação envolvendo poder público, setor privado, instituições de ensino e pesquisa, agências de crédito e sindicatos de trabalhadores. Cumpre também à gestão pública fazer emergir sinergias que a atuação privada isolada não permite, em áreas como novos mercados, qualificação de mão de obra, aproximação da oferta e da demanda em itens estratégicos, como os serviços tecnológicos, inovações produtivas e de gestão, compras coletivas; parcerias nacionais e internacionais. O gestor público pode, sem custo praticamente algum, fazer surgir uma “governança” público-privada e um “capital social” de grande valia.

É este capital social que, a partir dos próprios recursos privados, incrementará a competitividade produtiva local. Fóruns de Desenvolvimento Econômico e Arranjos Produtivos Locais (APLs) são exemplos típicos destas redes de cooperação. Esses espaços multipartites, portanto, dialogam com esta estratégia, na medida em que juntam os atores e instituições em torno da busca de resultados comuns e concretos, a partir de uma agenda geral, local e setorial, calcada em diagnósticos e metas. (...)

No caso da economia solidária, a gestão pública deve buscar agir também de modo a induzir processos virtuosos de crescimento. Antes de aprofundar estes processos, cabe uma breve contextualização da economia solidária, para que melhor se discuta seus avanços, possibilidades e desafios.

2. Um pouco da história da economia solidária

A economia solidária vem de longa data. Suas origens remontam a meados do século XIX, quando algumas experiências europeias buscaram constituir uma economia não capitalista, baseada no cooperativismo de produção e de consumo, vinculado a um socialismo denominado de utópico.

De fato, estas experiências foram concebidas e realizadas como uma das respostas do movimento operário europeu ao sistema econômico de exploração capitalista. Desde então, entre os princípios da economia solidária estão a cooperação, a união e a solidariedade entre homens e mulheres, para não somente garantir o sustento de suas famílias, mas também evidenciar, no contexto da luta ideológica e política, que existem outros meios possíveis de eficientemente organizar a produção e a distribuição da riqueza, distintas do individualismo e da valorização do privado, propugnados pela ideologia liberal capitalista.

Nesta longa trajetória de aprendizado da economia solidária desde então, há casos de empreendimentos solidários bem sucedidos. Na Europa, dois casos de economias solidárias exitosas, por exemplo, são: o da Região de Emilia Romagna, na III Itália, onde a participação das cooperativas e das pequenas empresas situa-se em torno de 30% do PIB da região; e o do grupo espanhol Modragon Corporacion Cooperativa, grupo que está entre os maiores da Espanha na atualidade.

Muitos fatores particulares explicam o sucesso de ambas, mas um deles parece comum: o da busca de “integração” destes empreendimentos solidários nos mercados capitalistas, sem que isto ferisse os princípios basilares que sustentam a economia solidária. De outro lado, tirante também as especificidades de cada caso, há muitas experiências que pecaram por não se prepararem adequadamente para sua participação nos mercados capitalistas.

Assim, apesar da longa trajetória percorrida, ainda permanece um grande desafio para a economia solidária: como cultivar os princípios da economia solidária (inclusão, cooperação, democracia, igualdade e geração de renda) em um contexto em que predomina o modo de organização social e de produção capitalista? Como concorrer com as empresas capitalistas em termos de preços, qualidade e prazos?

3. A economia solidária no Brasil

No Brasil, a economia solidária – que tem origens ligadas às cooperativas agrícolas – foi retomada com força a partir da década de 1990, quando se verificou grande número de empresas falidas e de pessoas desempregadas. Na Região do ABC, o sindicalismo apresentou o cooperativismo de produção como forma de manutenção da fábrica (seu maquinário e postos de trabalho). Isto ampliou a abrangência da economia solidária local, que vai dos microempreendimentos de inclusão de segmentos mais vulneráveis até grandes fábricas geridas pelos cooperativados.

A Região do ABC vivenciou uma importante experiência que foi a dos metalúrgicos do ABC – uma das categorias mais atingidas na crise da década de 1990. Na época, o sindicato era presidido pelo hoje prefeito Luiz Marinho. Em 1997, a empresa Conforja, situada em Diadema, teve sua falência decretada. A razão desta falência residia fundamentalmente na queda dos investimentos públicos da Petrobrás no período. 

A Conforja, no seu auge nos anos de 1970, chegou a ser a maior forjaria da América Latina. Fornecedora da Petrobrás, a empresa empregava cerca de 1200 funcionários. Após muitas discussões, os funcionários da empresa decidiram, com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, arrendar a empresa e constituir a Uniforja – um conjunto de quatro cooperativas de produção. 

Hoje, a Uniforja expande seus investimentos e é uma das empresas que fazem parte do seleto grupo de fornecedoras da Petrobrás. A vontade dos trabalhadores e das trabalhadoras, com o apoio firme do Sindicato, possibilitou que, além da recuperação da fábrica, pudesse a Uniforja constituir-se em uma empresa de sucesso, com faturamento de mais de R$ 220 milhões por ano e geração de mais de 600 postos de trabalho.

A partir da experiência exitosa da Uniforja e de outras, a economia solidária voltou a ter um olhar especial, sobretudo nas políticas de geração de emprego e renda, executadas pelos governos, sindicatos, universidades, igrejas, ONGs e outros membros da sociedade civil. A economia solidária se fortaleceu no governo Lula com a constituição, em 2003, da Secretaria Nacional de Economia Solidária, e continuou a se expandir na gestão Dilma.

Entretanto, após o ilegítimo impeachment da Presidenta Dilma (ilegítimo, pois não foi demonstrada culpa de responsabilidade da Presidenta), teme-se um forte retrocesso das políticas de apoio à economia solidária.  Este temor é ainda maior na medida em que ainda há muito a se avançar em itens como financiamento, comercialização, capacitação gerencial, formação de redes e parcerias.

4. A economia solidária e a política municipal de desenvolvimento: a experiência de São Bernardo do Campo entre 2009 e meados de 2015

 Até há pouco era baixo o número de governos municipais e estaduais que efetivamente tinham uma política de apoio à economia solidária.  Estas políticas somente começaram a crescer em número, abrangência e valores envolvidos a partir dos anos de 1980/1990, a partir de cidades como Porto Alegre, Belém, Santo André e Recife. Desde então, tem crescido estas experiências. No Estado de São Paulo, destaques para os casos de Osasco, Diadema, São Bernardo do Campo, e, mais recentemente, a cidade de São Paulo (especialmente a partir de 2014, na Gestão do Secretário de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, Artur Henrique da Silva Santos). Registre-se que o Governo do Estado possui uma política de economia solidária muito diminuta, limitando-se a apoiar, por meio da Sutaco (ligada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Governo do Estado de São Paulo) alguns grupos de artesanato.

Neste artigo, vou me ater à política desenvolvida pela Prefeitura de São Bernardo, ainda quando exercíamos a coordenação da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Empreendedorismo, isto é, entre 2009 e meados de 2015.

A política pública da Prefeitura de São Bernardo do Campo no campo da Economia Solidária, realizada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Empreendedorismo, por nós coordenada entre 2009 e julho de 2015, alicerçou-se através de parcerias com instituições como Unisol, Agencia de Desenvolvimento Solidário (ADS-CUT), Centro de Formação Padre Léo Comissari, Sebrae, Consulado da Mulher, Captazia dos pescadores, Centro de Referência em Assistência Social (Cras), Centros de Atenção Psicossocial (Caps), Forum Municipal, Regional e Nacional de Economia Solidária, Rede de Gestores em Política Pública de Economia Solidária, GT Trabalho e Renda do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, Dieese, Fundação Volkswagen, entre outras.

Uma série de ações integradas constituiu a política para a economia solidária no município, no período:
a)       Constituição de um Centro Público de Economia Solidária em São Bernardo do Campo. Um embrião desse Centro Público foi o denominado “Espaço Solidário”, que foi inaugurado em agosto de 2011. A intenção com este Espaço Solidário - anexo à Central de Trabalho e Renda, que, por sua vez, foi constituída em 2010, - é que ele se consolide como referencia da economia solidária no município, possibilitando maior integração e organização dos empreendimentos e suas atividades. Foram realizadas no Espaço Solidário atividades de formação e assessoria para os grupos já formados, assim como orientações para pessoas que pretendem organizar, coletivamente, um empreendimento para produzir bens ou prestar serviços. O Espaço Solidário contribuiu, no período, para a exposição e comercialização dos produtos e serviços dos empreendimentos solidários, tais como artesanato, costura e reciclagem. Digno de registro foi a experiência da lanchonete conduzida exclusivamente pelos usuários do Centro de Atenção Psicossocial, que produzem e comercializam doces e salgados, propiciando atividades que, para além de terapêuticas, possibilitaram a reinserção dos usuários no cotidiano de trabalho e no trato com o público consumidor;
b)      Priorização dos empreendimentos da economia solidária nas compras públicas;
c)       Criação de espaços para os empreendimentos nos bairros em processo de urbanização, como é o caso dos conjuntos habitacionais construídos pela Prefeitura;
d)      Fomento à criação de cadeias produtivas regionais vinculadas à economia solidária;
e)      Apoio à economia solidária por meio da Lei Municipal de Apoio à Economia Solidária.
5. A inédita experiência da SBCSol

Deixei para o final deste artigo uma das ações mais importantes no campo da economia solidária no período em que a Secretaria esteve sob a nossa coordenação: a inédita incubadora de Empreendimentos Solidários de São Bernardo do Campo (SBCSol), parceria entre o Instituto Granbery/Universidade Metodista, a Prefeitura Municipal e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Lançada em 2012, a SBCSol teve o desafio de criar uma metodologia específica de incubação para os empreendimentos solidários, bem como apoiá-los com capacitação diversas. Na prática, isto significava também tornar os empreendimentos solidários competitivos e capazes de concorrer no mercado capitalista. Isto envolvia ainda a participação da economia solidária em processos de licitação dos poderes públicos municipal, estadual e federal.

Apesar do seu curto período de existência, foi possível extrair elementos importantes da experiência da SBCSol. Uma delas foi a necessidade de que o processo de incubação enfatizasse a busca constante da qualidade dos produtos e serviços ofertados pelos empreendimentos, o que requereu, por sua vez, o aprimoramento persistente dos processos de produção e de prestação de serviços.

Outro elemento a destacar foi o da discussão dos rumos da formalização dos empreendimentos solidários, se na forma de cooperativa, associação, pequena empresa, entre outras. Certamente, norteou a discussão e escolha o caminho que possibilitasse dar melhores condições de remuneração aos seus sócios. Mas este foi apenas um dos pontos levados em conta.

Como resultado, a SBCSol realizou a incubação de 21 negócios, sendo 18 empreendimentos e 3 redes (Rede Alimentação, Rede Artesanato e Rede Reciclagem Têxtil);  4 seminários de desenvolvimento metodológico, divulgação e compartilhamento dos resultados do projeto; 10 cartilhas temáticas de formação e 10 oficinas gerenciais de capacitação; montagem de  biblioteca com 1,2 mil títulos ;  site, blog e perfil da SBCSol; 2 Livros editados e publicados e 1 vídeo institucional; 9 artigos e 2 Teses de Doutorado; inserção dos Estudos da Economia Solidária na grade curricular na disciplina de Gestão do Terceiro setor.

No total, 180 pessoas diretas (e 460 pessoas indiretamente) foram beneficiadas pelo projeto. Mais de 40 professores, pesquisadores e alunos estiveram envolvidos no projeto.
Boa parte da experiência da SBCSol está contada em dois livros. O primeiro deles é “A Política Pública e o papel da universidade: reflexões da Incubadora de empreendimentos solidários de São Bernardo do Campo- SBCSol”, organizado por Douglas Murilo Siqueira e Fabiana Cabrera Silva e lançado ela editora da Universidade Metodista em 2014. Neste livro, consta artigo deste que vos escreve.

O segundo livro é “Metodologia de Incubação: Experiências de Economia Solidária em São Bernardo do Campo”, organizado por Daniela Sampaio Kavasaki Gomes, Renata Mendes e Cristina Paixão Lopes. 

Lançado em 2015, a publicação, por meio de diversas ilustrações, relata as experiências com os grupos incubados a partir da metodologia aplicada, enfatizando desde princípios da autogestão até processos de sua formalização e estruturação.  Entre os autores de artigos no livro, estão alguns dos gestores que estiveram diretamente envolvidos como projeto, como Nilson Tadashi Oda, Vanderléa Lima Sena Pereira e Elizabete de Jesus Rocha. O livro pode ser baixado em http://portal.metodista.br/noticias/2015/maio/editora-metodista-disponibiliza-livros-gratis

Por fim, cabe ter claro que a SBCSol, em si mesma, foi uma inovação no Brasil, pois conciliou a política pública de fomento à economia solidária com o potencial de aprendizagem que a Universidade oferece. Este modelo pode agora ser replicado em outras localidades. Evidentemente, ao ser replicado, é fundamental potencializar seus pontos fortes e eliminar ou reduzir seus problemas.

Informo que esse artigo é uma versão ajustada e atualizada do meu artigo publicado no referido livro sobre Economia Solidária publicado em 2014.

Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS e Atual Diretor Técnico da Adesampa. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre janeiro de 2009 e julho de 2015. Foi Diretor-Superintendente do SBCPrev entre ago.2015 e fev.2016

Obs.: Artigo publicado em 4/7/2016 em meu blog semanal no site do jornal ABCDMaior.