Jefferson José da Conceição
Regiões como o ABCD Paulista e
Bairros paulistanos como Barra Funda, Luz, Brás, Mooca e Ipiranga – apenas para
citar exemplos bem próximos – foram marcados de maneira profunda no século XX
pelo ambiente fabril. No Brasil, ainda que em escala menor, há outras áreas com
configurações semelhantes, como é o caso da zona portuária do Rio de Janeiro.
Internacionalmente, há também, claro, várias áreas que de igual modo foram
palco da industrialização no século XX. Uma delas é a Região do Vale do Ruhr,
na Alemanha, experiência da qual falaremos rapidamente mais adiante.
Todas elas
passaram pelo impacto das mudanças vivenciadas pela indústria desde as últimas
décadas do século XX até hoje, e que, em muito dos casos, representou o
fechamento de fábricas e a geração de “vazios urbanos”, isto é, largas áreas
degradadas compostas por antigas indústrias desativadas.
Revitalizar estas áreas, por meio
do restauro e preservação do patrimônio histórico combinada com a constituição
de novas atividades produtivas e de serviços avançados, bem como de
entretenimento, cultura e lazer, é tarefa essencial a ser assumida pelo setor
público em parceria com o setor privado.
1 Apito, macacão e graxa
Voltemos aos casos do ABCD Paulista
e dos mencionados bairros da capital paulista.
Para os moradores e para os que
trabalhavam nestas regiões até o fim do século passado, os apitos das fábricas
estavam entre os símbolos que mais os faziam se sentir “em casa”. Por meio dos
apitos, criou-se uma identidade entre o cidadão e o território. Seus sons
agudos, tocados em tons crescentes durante alguns longos segundos para depois
irem sumindo aos poucos, cortavam os ares do entorno em horários rigorosos no
período da manhã, da tarde e da noite. Os apitos representavam a mensagem de
que havia chegado o momento de ir para o batente, do intervalo para a refeição
ou de ir embora para casa.
Em diferentes momentos do século
XX, a fábrica e o operariado constituíram-se em sinônimos quase
naturais destas
regiões. Além dos apitos, a lembrança imediata era a dos operários em seus
uniformes com graxa em sincronia de movimentos com máquinas, engrenagens e
linhas de produção. Nestas áreas, foram fortes as marcas da cultura do trabalho
e da organização sindical, legados da imigração do final do século XIX e início
do século XX, que se mesclaram aos valores trazidos pela migração interna na
segunda metade do século XX.
Tanto para aqueles que viviam nestas
regiões, quanto para os que as percebiam “de fora”, as fábricas estavam sempre
“vivas”, em funcionamento frenético. Havia, sim, a possibilidade de retração da
produção, em função dos movimentos cíclicos do sistema capitalista e de crises
episódicas geradas pelas políticas econômicas nacionais. Mas estas crises logo
eram seguidas por etapas de expansão do processo produtivo e dos investimentos.
A fábrica sempre voltava a funcionar a pleno vapor.
2 Fechamento de fábrica e melancolia
O forte entrelaçamento entre história
da industrialização e cotidiano da vida das pessoas é uma das razões pelas
quais nestas regiões parece ser maior a melancolia do fechamento de fábricas.
Fechamento este, registre-se, que é intenso em virtude do processo de
reestruturação industrial das últimas décadas. No caso dos bairros paulistanos,
o processo começa já em meados do século XX. Na Região do ABCD Paulista, isto
se dá a partir especialmente da reestruturação produtiva e das políticas
governamentais draconianas dos anos de 1980 e 1990. A exceção ocorreu durante
os Governos Lula e parte do Governo Dilma, quando a indústria, no ABCD e no
país como um todo, viveu processo de retomada da produção, investimentos e
empregos.
Um metalúrgico de uma empresa chamada FIC, ao
se referir ao último dia de produção da fábrica no ABCD no começo da década de
1990, disse: “fiquei sabendo que teve
gente chorando ontem” (Folha de São Paulo, 2/10/1991). Outra narrativa que mostra essa relação entre
o encerramento de fábrica e o sentimento de tristeza foi a que fez o jornalista
Ademir Médici em matéria para o Diário do Grande ABC (em 8/6/2000): “Retornar à fábrica e caminhar pelos mesmos
pátios internos cobertos de mato e lixo e observar apenas as velhas estruturas
de ferro, sem telhas e paredes laterais, vazios, praticamente no centro de
Santo André, neste crepúsculo do milênio. Esta experiência foi vivida mês
passado, pelo sindicalista e memorialista Philadelpho Braz. A emoção tomou
conta do seu coração”.
3 “Vazios urbanos”: degradação, prostituição e
drogas
Nas últimas décadas, têm
crescido, nas regiões de tradição industrial de diversos países, “vazios
urbanos” gerados por processos de relocalização ou “desindustrialização”. Não
há na língua portuguesa terminologia exata para designar estes vazios urbanos.
Em francês, elas são denominadas de “friches
urbaines” ou “friches industrielles”.
Esses vazios correspondem a
terrenos ou prédios ainda não demolidos de antigas fábricas, em pleno meio
urbano. São espaços desocupados ou subocupados, construídos ou não,
anteriormente ligados à atividade industrial.
Alguns desses prédios,
localizados muitas das vezes em áreas centrais da cidade, representam massa
falida, com pendências judiciais como pagamento de débitos trabalhistas e
dívidas com fornecedores, o que torna mais difícil sua venda e reutilização
para outros fins.
Em geral, essas áreas são
associadas à imagem de degradação, isto é, áreas de insegurança, marginalidade,
vandalismo, tráfico de drogas, assassinatos, depósitos de lixo, etc. Esses
prédios e terrenos - que sobram do que antes era uma fábrica - têm sido
ocupados com frequência por segmentos excluídos da sociedade (prostitutas,
mendigos, drogados e menores delinquentes). Trata-se de um dos símbolos mais
duros da decadência de uma localidade que antes era tomada como “terra de
oportunidades”.
Por falta de manutenção, também
são negativos os efeitos visuais que estes vazios urbanos geram.
Apesar das diversas dimensões do
fenômeno – social, cultural, geográfico, arquitetônico etc – ainda são poucos
os estudos e planos no Brasil sobre os vazios urbanos. Isto mostra que o
fenômeno é relativamente recente no País. No caso do ABCD, não há, segundo se
pôde apurar, levantamento sistemático destas áreas. A rigor, este levantamento
deveria ser realizado pelas Prefeituras.
Matéria do Diário do Grande ABC,
de 2/10/2005, levantou como exemplo 12 grandes áreas vazias de antigas fábricas
na Região do ABC. As fábricas e seus municípios eram: em São Caetano: Coferraz
(antiga siderúrgica), Cerâmica São Caetano, Indústrias Matarazzo (ramo
químico); em Santo André: Nordon (estruturas metálicas), Pierre Saby
(estruturas metálicas), Cortiris (cortiças), Fichet (estruturas metálicas),
Vila América (têxtil), IAP Copas (fertilizantes), Ouro Verde (fertilizantes);
em São Bernardo do Campo: Tognato (têxtil), Indústrias Matarazzo (químico).
4 De galpões abandonados aos shoopings, hipermercados e fast foods
Quando não se veem os vazios,
observa-se, naquelas áreas, a instalação de shopping
centers, hipermercados, franquias de fast
food, redes de locadoras etc, no qual os salários representam entre 30% e
50% dos valores pagos na antiga fábrica, é baixa a geração de tecnologia e
reduzido o nível de demanda em relação aos fornecedores locais. Não são poucos
os casos em que as fábricas dão lugar também às novas igrejas que admitem
arquiteturas menos ortodoxas. Em outros, constroem-se prédios residenciais.
Infelizmente, nestes novos
empreendimentos, não se percebe, em geral, qualquer preocupação em respeitar
uma “arqueologia da indústria”, que busque preservar os traços históricos das
antigas fábricas. São raríssimos os casos de investimentos de revitalização
desses prédios, visando o seu reaproveitamento em novas atividades fabris,
espaço de atração de serviços avançados ou entretenimento e lazer.
Um exemplo emblemático, porque a
área se constituiu em logradouro de grande atividade industrial no passado, é a
Avenida Industrial, em Santo André. Antes, a área tinha atividade
predominantemente fabril – como o próprio nome indica. Hoje, os galpões
industriais cedem espaço a novos empreendimentos (como o ABC Plaza Shopping,
inaugurado em 1997, em área que pertenceu à indústria de eletrodomésticos Black
& Decker), mas não há uma preocupação de salvaguarda mínima da rica
arquitetura existente.
5 Restaurar e preservar o Patrimônio histórico e dar novas
funcionalidades às antigas áreas industriais degradadas
No Brasil é
quase nulo o número de prédios que são restaurados e protegidos por órgãos
oficiais de preservação do patrimônio histórico ou pela iniciativa privada, o
que ameaça o resgate da própria história da industrialização no País.
Especialistas apontam a
existência de não mais do que 30 fábricas ou construções similares tombadas
pelos organismos oficiais em todo o País. Deste grupo de empresas, são raras as
que conseguem, de uma ou outra forma, preservar dentro dos estabelecimentos
parte das máquinas, com vistas a resgatar o modo de produção ali vigente.
Esta ausência de preocupação foi
um dos motivos do desaparecimento dos engenhos da produção de açúcar no século
XVI. Hoje ela atinge as fábricas do século XIX e XX, em setores diversos como o
têxtil, de alimentação, metalúrgico e naval.
Um exemplo simbólico, já que se
trata de um marco da industrialização brasileira, é o caso dos
prédios das
Indústrias Matarazzo, construídos em cerca de 30 cidades do Estado de São
Paulo, no século XX. A maioria desses prédios das Indústrias Matarazzo está
hoje abandonada ou demolida (como a fábrica de alimentos Petybon, no bairro da
Lapa). Há casos, como no bairro do Brás, em São Paulo, em que a unidade da
empresa Matarazzo foi reaproveitada, tornando-se parte dela em sede da Central
Única dos Trabalhadores (CUT), e a outra parte, em igreja pentecostal.
Uma tendência adotada em diversos
países europeus é a transformação dos estabelecimentos de maior valor histórico
em áreas revitalizadas nas quais se incentiva a instalação de serviços
avançados e de maior tecnologia: parques tecnológicos, incubadoras de start ups, laboratórios de pesquisa,
empresas de comunicação, marketing, serviços financeiros, entre outros.
Há também experiências nos quais
as velhas estruturas fabris, junto com as indústrias em atividade e mais as
estações ferroviárias, usinas hidrelétricas e vilas operárias, compõem projetos
de cultura, entretenimento e “turismo industrial”.
Na Região do ABCD, há poucos exemplos de
reaproveitamento desses prédios para atividades não fabris. Algumas dessas
poucas iniciativas poderiam ter maior visibilidade e serem mais valorizadas
pela comunidade, se houvesse o devido investimento na revitalização dos
prédios.
6. A experiência do Ruhr, na Alemanha
Regiões como Sheffield,
Liverpool, Manchester e Cardiff (Reino Unido), Detroit (EUA), e Vale do Ruhr,
na Alemanha, estão entre algumas das mais conhecidas pelo grande volume de
atividades industriais, fábricas e empregos que chegaram a nuclear. Falemos um
pouco sobre esta última, o Vale do Ruhr.
Localizada no centro do estado da
Renânia do Norte-Vestfália, acompanhando o leito do rio Ruhr, o Vale do Ruhr (Ruhrgebiet,
em alemão) é a região mais populosa da Alemanha. Formada por várias cidades
(embora não se constitua em unidade político-administrativa), é também a região
de maior densidade industrial do país e da própria Europa. Semelhante ao
verificado na Grande Detroit, o modelo de produção fordista gerou elevados
investimentos na indústria pesada, que resultou em grandes fábricas siderúrgicas,
químicas e de mineração.
A Região do Ruhr sofreu bastante
com as mudanças trazidas no processo industrial, que tiveram como consequência
o desemprego, problemas ambientais e abandono de fábricas, prédios e galpões na
região. Mas a região vem conseguindo se revitalizar.
O projeto de revitalização iniciado
ao final da década de 1980 busca preservar a rica história da região.
Procura-se a transformação das antigas áreas para que estas tenham novos usos
combinado a projetos urbanísticos. A ideia é associar a região a uma imagem
mais sustentável e ecológica. O projeto do Emscher Park promove diversas
parcerias envolvendo o setor público e privado.
Ao lado de investimentos pesados na constituição de espaços verdes em
meio às antigas unidades fabris, a estratégia consiste em estimular novos usos
da área, especialmente por meio da instalação (muitas vezes com subsídios) de
empresas de comunicação, internet, design, moda, turismo, centros de convenções
e museus, bem como da realização de vários eventos culturais.
O site do Projeto de
revitalização do Vale do Ruhr sintetiza o plano:
“Especificamente, os dois principais objetivos são (...) dar à região
uma imagem mais verde e dar às plantas industriais tradicionais mais “vida”
(...). Crucial para a reconstrução foi o Parque Paisagístico Emscher que
atuaria como um "conector verde" entre os assentamentos do Vale do
Ruhr, seguindo o caminho do rio Emscher (...). Além de conectar as 17 cidades
localizadas ao longo do vale do rio, este novo corredor leste-oeste une diversas
cidades, mas expandindo alguns cinturões verdes no sentido norte-sul. O parque
é composto de campos arbóreos regenerados, florestas recuperadas, áreas de
lazer existentes e que, juntos, oferecem um conjunto coeso de infraestrutura
verde para toda a região. Os projetos específicos criaram o sistema de parque,
variando entre o desenvolvimento de grandes áreas de terras de plantio e
desenvolvimento imobiliário. Hoje, o distrito de Ruhr-Emscher é envolto por uma
bela cortina verde que ocasionalmente inclui um marco histórico industrial (...)
rodeado por árvores. O plano para a região orienta o uso das instalações
industriais abandonadas, de modo a melhorar a qualidade das áreas degradadas em
torno delas e movimentar a economia, fazendo uso da infraestrutura existente.
Um dos galpões mais conhecidos era o da indústria da Coca-Cola que hoje abriga
em suas estruturas maciças uma coleção de arte, cultura, habitação, comércio e
escritórios. Concertos e shows também acontecem nos quadros de aço das antigas
fábricas. Áreas verdes de lazer, com trilhas para caminhadas e paredes de
escalada, foram esculpidas a partir das colinas antigas de estacas de carvão.
Caminhos através de clareiras das árvores que ligam os diversos componentes do
parque seguem as antigas estradas industriais e linhas ferroviárias”.
Matéria da Folha de São Paulo, de
24/9/2006, escrita por Raul Juste Lores, também faz um importante relato sobre
a revitalização do Vale do Ruhr:
"Até para recuperar a auto-estima da região, a primeira ideia foi justamente
restaurar as fábricas abandonadas, que eram a nossa cara, e dar-lhes novas
funções" (disse à Folha Irmgard Schiller, coordenadora do projeto
Bismarck, de recuperação industrial de Gelsenkirchen). O maior símbolo desse
renascimento é Zollverein, em Essen, tida como a fábrica mais bela da Europa e
declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Inaugurada em 1932,
foi desenhada por dois arquitetos da Escola Bauhaus, pioneira do modernismo. Zollverein
vem ganhando diversas novas funções depois de um plano diretor concebido por
Rem Koolhas, vencedor do Pritzker, o Nobel da arquitetura, em 2000. Nos últimos
sete anos, os governos alemão e regional e a União Européia investiram 110
milhões para recuperar o complexo. Ali, foi instalada a maior pista de
patinação da Europa, além de piscinas públicas, restaurantes, teatro e centros
para exposições. Um museu interativo de ciências foi inaugurado no ano passado
para atrair escolas de toda a Alemanha. Por toda a região, foi criado um
cinturão verde, uma sucessão de parques horizontais por 400 km que praticamente
ligam todas as cidades. O principal deles é o Parque Norte, em Duisburg, que
aproveitou fornos e as minas abandonadas da antiga siderúrgica da Thyssen”.
Por fim, cabe registrar que esse
artigo é uma versão adaptada e atualizada de trechos da minha tese de
doutoramento, intitulada “Quando o apito
da fábrica silencia: sindicatos, empresas e poder público diante do
fechamento de indústrias e da eliminação de empregos na Região do ABC”.
Posteriormente, parte deste estudo serviu de base para o livro que, com o mesmo
nome, lancei, em 2008, pela Editora ABCDMaior. A edição do livro está esgotada,
mas é possível ter acesso às íntegras da tese e do livro em http://blogjeffdac.blogspot.com
Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS e Atual Diretor Técnico
da Adesampa. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de
São Bernardo do Campo entre janeiro de 2009 e julho de 2015. Foi
Diretor-Superintendente do SBCPrev entre ago.2015 e fev.2016.
Artigo publicado no site do ABCDMaior (www.abcdmaior.com.br), na coluna blogs, em 18/7/2016.