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terça-feira, 29 de março de 2016

O PÊNDULO, O IMPEACHMENT E OS RISCOS DAS POLÍTICAS DISTRIBUTIVAS

Jefferson José da Conceição

São várias as questões que envolvem o embate sobre o processo de eventual impeachment da Presidente Dilma. Sobre este processo, nossa posição - que fique claro desde já - é que ele não está respaldado em crime de responsabilidade. Por conseguinte, é ilegal. Uma espécie de golpe branco. Todavia, não é este o objeto deste artigo. Aqui, queremos trazer à luz uma das dimensões, nem sempre reveladas, deste embate.

Referimo-nos ao risco da eliminação ou redução das políticas distributivas que visam enfrentar a enorme e histórica distorção da estrutura econômica nacional, que é a elevada concentração de renda nacional. No Brasil, até 2003, a metade mais pobre da população do país recebia praticamente o mesmo montante de renda que o grupo dos 1% mais ricos da população!

As políticas distributivas dos Governos Lula e Dilma, que tiveram início no ano de 2003 e foram constituídas ao longo de mais de uma década, estarão certamente no centro das alterações propostas pela nova equipe econômica, caso as forças em favor do impeachment consigam sobrepujarem as forças de resistência ao golpe.

Contudo, foram justamente estas políticas que permitiram que a desigualdade social no Brasil, medida pelo Índice de Gini, caísse mais rapidamente a partir de 2002. O referido índice caiu expressivamente de 0,587 em 2002 para 0,526 em 2012. Como se sabe, o Índice de Gini varia de 0 a 1: quanto mais próximo de zero, mais igual a distribuição de renda (caso, por exemplo, dos países nórdicos da Europa); quanto mais próximo de 1, mais desigual ela é (caso de alguns países africanos). Não temos os dados do índice de Gini do Brasil dos anos de 2013, 2014 e 2015. Sabe-se, porém, que, infelizmente, estes índices pararam de cair, em parte em função da desaceleração do crescimento e da crise econômica.

Para que se tenha claro o significado do debate das políticas distributivas, cabe antes: a) conceituar o que são políticas distributivas; b) contextualizar historicamente as políticas distributivas no âmbito das políticas nacionais.

1 O que são Políticas Distributivas

As políticas distributivas consistem no conjunto de medidas que tem como principal objetivo alterar a situação de distribuição de renda entre os indivíduos e classes sociais. Via de regra, são dois os principais instrumentos de políticas distributivas: 1) o sistema tributário; 2) os gastos sociais e de transferência de renda, juntamente com a intervenção direta do Estado no próprio nível de renda.

No Brasil, o sistema tributário continua praticamente o mesmo nas últimas décadas. Não se mexeu significativamente nele, nem mesmo nos governos Lula e Dilma. Ele continua eminentemente regressivo: está baseado mais na cobrança de tributos e contribuições sobre os preços do que sobre a renda e a propriedade. O predomínio é dos impostos indiretos e não dos impostos diretos. Logo, nesta estrutura tributária, os pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos.

Raras e elogiosas tentativas, por exemplo, como a do Governo Haddad, no âmbito do Município de São Paulo, de implantar o IPTU Progressivo (pelo qual as moradias de bairros mais nobres pagam proporcionalmente mais que as moradias de bairros populares), foram prontamente combatidas pela campanha conservadora liderada por Paulo Skaf, presidente da Fiesp – a mesma instituição que hoje é uma das que puxam o discurso pelo impeachment da Presidente Dilma, agora com a campanha “eu não vou pagar o pato”.

Outra campanha da Fiesp, que vai na mesma linha, de travar a possibilidade de se fazer políticas distributivas por meio dos impostos, é a que combate o retorno da CPMF. Esta contribuição, se aprovada, permitiria aumento dos recursos para a Saúde e Previdência.

Já os Gastos Sociais e de Transferência de Renda são aqueles que procuram garantir um bem-estar mínimo de vida para todos os indivíduos, de forma a reduzir as desigualdades sociais. Na prática, a implementação destas políticas deve significar que o volume de recursos destinados a elas é maior do que as contribuições arrecadadas dos indivíduos e famílias beneficiadas. No caso da intervenção direta, o Estado atua no aumento da renda auferida pelas camadas beneficiadas. É o caso, por exemplo, da política do salário mínimo. Trataremos os dois tipos em um mesmo grupo.

Veremos que, neste campo (o dos Gastos Sociais e de Transferência de Renda), os governos Lula e Dilma ousaram realizar uma série de medidas importantes. Estas medidas estão, a nosso ver, em risco, dependendo do rumo que tomar os acontecimentos no País.

2 O Estado, as Políticas Distributivas e o Welfare State no Pós-Guerra

Do ponto de vista das ideias e das práticas econômicas, a ciência caminha como um pêndulo: ora as ideias dominantes convergem para uma aceitação do papel decisivo do Estado, do planejamento e das políticas públicas na promoção do desenvolvimento econômico; ora a mainstream (que quer dizer as ideias dominantes; que prevalecem majoritariamente na sociedade em determinado momento) tende para o pensamento liberal. De acordo com este segundo tipo de pensamento, as livres forças do mercado (e não as políticas públicas) são consideradas o melhor caminho para a promoção do desenvolvimento.

Em 1929, durante a grande crise mundial do capitalismo, este debate ocorreu de modo transparente. Em princípio, as explicações e as saídas da crise foram vistas pelas lentes do pensamento liberal, então dominante nos países avançados (EUA e Europa). Embora estivessem sendo implementadas as políticas propugnadas pelo liberalismo, a crise prosseguiu e se aprofundou. Outras explicações foram buscadas. Uma delas foi propiciada pelo pensamento de John Maynard Keynes, com a sua “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro”, de 1936.

Keynes mostrou que a crise era uma possibilidade inerente ao funcionamento do sistema econômico capitalista, sujeito às ondas de incertezas e pessimismo, que se refletem diretamente no Investimento produtivo. Portanto, na crise seria fundamental que o Estado atuasse por meio de políticas fiscais e monetárias expansivas. O objetivo é incrementar a demanda efetiva (investimento e consumo) da economia. Isto, mesmo que, em um primeiro momento, pudesse representar aumento do déficit público.

Com efeito, a solução para a crise capitalista do início da década de 1930 passou por um pesado pacote de investimentos públicos, expressos no famoso programa New Deal, do Presidente Franklin Delano Roosevelt, nos EUA. A partir daí e ao longo de todo o pós-Guerra até o final dos anos de 1970, o Estado jogou um papel decisivo no processo de desenvolvimento das economias capitalistas, por meio do investimento público, do financiamento, da regulação e da indução do crescimento. Isto, em um claro confronto com os princípios do pensamento liberal. Neste período, o pendulo voltou-se para o respaldo às ações do Estado no campo do desenvolvimento.

Outro fator jogou peso importante para a expansão das políticas estatais – desta vez por meio das políticas sociais e de transferência de renda - após a Segunda Guerra. Trata-se do conflito da Guerra Fria e as suas consequências no campo das ações dos países avançados que compunham o lado capitalista. O temor da expansão do domínio socialista em terras europeias e americanas permitiu a conquista, pela classe trabalhadora, de uma série de conquistas no campo trabalhista, previdenciário e político que, somados, permitiram o que veio a se denominar de welfare state (estado de bem-estar social).

Assim, políticas como a fixação do salário mínimo, pisos salariais por categoria, redução da jornada de trabalho, seguro desemprego, previdência social, políticas de renda mínima, representação no local de trabalho, direito de sindicalização, organização e ampliação de partidos progressistas entre outros, são frutos ou puderam se expandir neste período, especialmente nos países capitalistas europeus, que estavam no epicentro da guerra fria. Uma das metas da ação governamental no período foi a universalização dos direitos ao usufruto das políticas relacionadas à educação e saúde, entre outras.

Entretanto, a crise das finanças públicas e o processo inflacionário da década de 1980 fizeram o pêndulo balançar novamente em favor das ideias liberais, agora denominadas de “neoliberais”. A força e o domínio das ideias transmitidas pelos Governos de Thatcher e Reagan, respectivamente, na Inglaterra e EUA, no início dos anos de 1980, simbolizaram os novos tempos. A queda do Muro de Berlim em 1989 e o chamado “Consenso de Washington” (receituário de medidas de cunho neoliberal, extraídas de um consenso de conferência realizada em Washington), no começo dos anos de 1990, consolidaram esta nova hegemonia nas ideias e políticas econômicas.

Todas as políticas do Welfare State foram postas em xeque pelo pensamento neoliberal. Salários deveriam ser fixados em mercado livres, sem o monopólio da ação sindical; as políticas sociais e de transferência não deveriam ser mais universalizadas e sim “focalizadas”, o que, na prática, representavam uma diminuição da sua abrangência e do volume dos recursos destinados aos gastos sociais. De certa forma, ao invés de um problema grave, a desigualdade passa a ser vista como natural e até desejável no sistema econômico capitalista.

Na Europa, uma série de medidas de cunho neoliberal foram implementadas, mas houve resistência à plena destruição das políticas do welfare state. Este debate continua em aberto no continente europeu.
No Brasil, os governos Collor e FHC, entre 1990 e 2002, representaram o momento de vigência das ideias e das políticas neoliberais. Aqui, além do ataque ao protecionismo de mercados (isto é, as políticas do Processo de Substituição de Importações do período posterior a 1930), a implementação destas políticas neoliberais tinha em mira os direitos garantidos na CLT, parte dos quais conquistados desde o período de Getúlio Vargas.

O resultado, como se sabe, foi, de um lado, o controle do processo inflacionário (especialmente quando comparado com a desordem dos preços ocorrida ao longo dos anos de 1980 e início dos anos de 1990), e, de outro, o aumento do desemprego, a precarização do trabalho, a diminuição da renda e o aumento da desigualdade e exclusão social.

 3 As Políticas Distributivas nos Governos Lula e no primeiro governo Dilma

No Brasil, o pêndulo voltou a pender para uma atuação mais proativa por parte do Estado a partir da eleição do Presidente Lula, e depois no Governo Dilma (especialmente os primeiros anos do primeiro Governo Dilma).

Associado ao forte crescimento do mercado interno, puxado pela expansão das commodities, do crédito e pela forte geração de empregos, foram várias as políticas distributivas implementadas.

Vamos apenas apontar algumas delas:

Política de Valorização do Salário Mínimo
Bolsa Família
Minha Casa, Minha Vida
Minha Casa, Melhor
Enem e Sistema Sisu
Prouni
Aumento dos recursos do Fies
Pronatec
Pronaf e apoio à agricultura familiar
Políticas de apoio aos pequenos empreendedores, como a aprovação da Lei Geral de apoio às Micro e Pequenas empresas, com o incentivo à formalização do microempreendedor.

Estes programas estiveram na base das políticas distributivas e do vigoroso crescimento do mercado interno, observado entre 2004 e 2012, em clara oposição ao verificado nos vinte anos anteriores. Eles foram decisivos, como já dito, para a redução dos índices de desigualdade no país.

 É claro que, aqui, não podemos deixar de notar também nossa preocupação pelo fato de que, após as eleições de 2014, o Governo Dilma optou por uma Política de ajuste fiscal que, ainda incompleta, também coloca em tela a possibilidade de redução dos gastos nas políticas distributivas.

Mas, se o combate no interior das forças que compõem o governo é grande, ele é ainda maior e menos propenso à vitória, se os economistas de oposição assumirem o governo, na eventualidade de impeachment da Presidente Dilma.

4 O discurso dos pró impeachment contra as políticas distributivas

De fato, já se podem ver na mídia declarações de que, em um eventual governo Michel Temer, haveria “revisão drástica dos gastos sociais”, em programas como o Minha Casa, Minha Vida, o Fies e até mesmo no Sistema Único de Saúde. A Política de Valorização do Salário Mínimo foi criticada pela oposição na própria campanha presidencial. Especula-se, também, sobre uma reforma trabalhista e previdenciária, na linha de flexibilização e eliminação de direitos. Declarações de economistas como Gustavo Franco e Armínio Fraga apontam nesta direção.

O ex-Ministro Moreira Franco, aliado de Temer, também foi claro em seus últimos depoimentos:
“Avaliamos medidas da área social que possam beneficiar a população, combater a pobreza e, ao mesmo tempo, manter o equilíbrio fiscal e a saúde das contas públicas (...). O Fies é eficaz, mas precisa de meritocracia” (...) “é fundamental fazer uma intervenção no SUS. O sistema é vital, mas está fora de controle. Não há, porém, clareza sobre como reorganizá-lo. Ao final, as propostas de cunho social vão se somar as da área macroeconômica para criar um pacote de reestruturação dos gastos".

Os novos e duros tempos, tanto no Brasil quanto no exterior, pendem novamente para as políticas neoliberais. Nós, desenvolvimentistas, defensores de políticas ativas do Estado em prol da redução das desigualdades sociais, resistiremos.

Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS e ex-Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre 2009 e junho de 2015. Atualmente, é diretor técnico da Agência São Paulo de Desenvolvimento.

Artigo publicado no site do ABCDMaior (www.abcdmaior.com.br), coluna blogs, em 28/3/2016.

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