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domingo, 26 de março de 2017

CONTEÚDO LOCAL VERSUS “ESCANCARAMENTO JÁ!"



Jefferson José da Conceição (jeffdacsenior@gmail.com)

Roberto Vital Anav (rovitan@ig.com.br)

Em fevereiro de 2017, o Governo Federal reduziu os índices de Conteúdo Local que serão exigidos na 14ª rodada de licitações de blocos para exploração de petróleo e gás natural (prevista para setembro). Esta redução de índices de conteúdo local acontecerá também na terceira rodada de leilões de blocos no Pré-sal (novembro). Até então, exigia-se, em média, 65% de compras de equipamentos e serviços nacionais para quem quisesse explorar o petróleo no Brasil. Com as novas medidas do Governo Federal, estes índices cairão para apenas 25%, em média. A Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ) estima que esta redução do conteúdo local exigido possa gerar o enfraquecimento da cadeia produtiva no Brasil, com a queda da produção local, o fechamento de empresas e a geração de cerca de 1 milhão de desempregados este ano.

Esta decisão tomada no setor de petróleo e gás tende a orientar a direção da política para vários outros setores da economia brasileira, como a indústria automobilística, eletrônicos, calçados, vestuário, farmacêutica entre tantos outros.

Isto, justamente no momento em que as ações do Presidente Donald Trump, recém-empossado para comandar os EUA, apontam para a construção de um muro na fronteira com o México e de depoimentos do novo presidente americano, tais como “as empresas que demitirem americanos e levem suas operações para o exterior terão uma punição substancial (...). Brigarei por cada um dos empregos americanos”. Trump disse também, na campanha eleitoral, que sobretaxaria produtos feitos no exterior em nações que tivessem custos de produção menores e que, a partir desses países, viessem a exportar para os EUA.

Claro, não estamos aqui nos alinhando entre aqueles que veneram Donald Trump. Ao contrário. Entendemos que os EUA e o “resto do mundo”, com Trump, viverão uma instabilidade política e econômica acentuada. Queremos apenas com isto destacar que o cenário internacional tornou-se muito complexo e não nos parece que uma política de liberalismo extremado seja a mais inteligente das políticas neste momento.

Neste artigo - que é uma versão ajustada de outro que publicamos em 5/1/2016-, pretendemos evidenciar que o plano do Governo Temer parece ser exatamente este: intensificar a abertura econômica, de modo a internacionalizar a economia brasileira (por meio da desnacionalização dos setores), mesmo que isto sacrifique empresas, produção e empregos nacionais.

Mais: que esta direção já estava sinalizada em um artigo escrito por Gustavo Franco, um dos expoentes do neoliberalismo e uma das referências em Economia ouvidas pelo novo governo. O artigo de Franco foi publicado em O Estado de São Paulo, em 29/11/15, e intitulado “Abertura Já!”.

Gustavo Franco é Professor de Economia da PUC do Rio de Janeiro. Foi secretário de política econômica adjunto do Ministério da Fazenda, diretor de Assuntos Internacionais e presidente do Banco Central. Foi um dos membros que discutiu e elaborou o Plano Real.  Franco faz parte dos economistas alinhados com os princípios do neoliberalismo. Pregando as benesses do livre mercado, Franco e outros neoliberais brasileiros também orientam o Governo Temer nos atuais projetos de reforma trabalhista, previdenciária e de Privatizações (estas reformas, entretanto, não são objeto deste artigo).

O Artigo de Gustavo Franco, “Abertura Já!”

No referido artigo do final de 2015, Franco defende “a revisão da estratégia de inserção externa, de nossas crenças sobre o conteúdo local, adensamento das cadeias produtivas e acordos internacionais. (...)”.

Franco parte para o ataque contra gestões desenvolvimentistas que estiveram à frente do País entre 2003 até 2015, momento em que escrevia seu artigo. Diz ele: “Na verdade, a proteção tarifária, as reservas de mercado, as desonerações (...) parecem se amontoar em tempos recentes no contexto do ‘capitalismo de quadrilhas’ que aqui se quis implantar, e que a operação Lava jato se empenha em combater”.

Quanto aos adjetivos raivosos de Franco, vamos deixa-los de lado. Faremos apenas dois breves registros.

O primeiro é que Franco não tem a mesma virulência crítica com relação ao período neoliberal no qual compartilhou a gestão econômica do País. Assim, ele não consegue avistar qualquer tipo de atos de quadrilha em relação à forma como se deu o processo de privatização no Brasil da segunda metade dos anos de 1990. Isto, em que pese o fato de que a privatização permitiu verdadeira liquidação, fatiamento e apropriação privada do patrimônio público, da ordem de mais de R$ 100 bilhões, como noticiaram vários órgãos e especialistas à época e livros como “O Brasil Privatizado”, de Aloysio Biondi, entre outros.

O segundo registro é que, de acordo com o relatório final da CPI do Banestado, apresentado no final de 2004, o próprio Gustavo Franco foi responsável pela evasão de mais de R$ 30 bilhões entre os anos de 1996 e 2002, pois foi o criador dos mecanismos que legalizaram as contas CC5. O relator da CPI mista chegou a sugerir o indiciamento de 91 pessoas, entre elas o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco. Pergunta: não seria, isto sim, um típico “capitalismo de quadrilhas”?

Mais importante aqui, porém, é destacar que o artigo de Franco já defendia um retorno aos princípios que nortearam as políticas dos anos de 1990, de Estado Mínimo, abertura indiscriminada às importações, desnacionalização, privatizações, livre entrada e saída de capitais (especialmente os especulativos, que fizeram uma festança nos tempos de Franco no Banco Central).

O que defendemos

Em artigos anteriores já mostramos nossa posição contrária ao retorno destas políticas neoliberais. Defendemos a intensificação do diálogo social por meio de fóruns como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, as Câmaras Setoriais, os Arranjos Produtivos Locais-APLs.

Somos favoráveis à elaboração e a execução de políticas industriais gerais e setoriais indutoras do processo de crescimento. Vemos sentido sim em medidas como conteúdo local, adensamento das cadeias produtivas, acordos internacionais, incentivos fiscais. A questão é como fazê-los de forma a melhor beneficiar o nosso desenvolvimento, e não apenas grupos individuais.

Apostamos em políticas ativas de inclusão social, incorporando a população de baixa renda ao mercado interno, como a Política de Valorização do Salário Mínimo, entre outras. Portanto, uma linha diametralmente oposta à defendida por economistas como Gustavo Franco.

Para Franco, as Políticas de Substituição de Importações após 1930 foram um “lixo” de que o Brasil precisava se libertar

Franco escreveu um livreto nos anos de 1990, no qual pretendeu desconstruir a racionalidade e o legado dos mais de 50 anos de Políticas de Substituição de Importações (PSI), experimentadas pelo País entre 1930 e 1980, e que se constituíram na força motriz de nossa industrialização. Para Franco, as políticas protecionistas nada mais eram do que um lixo de que o Brasil precisava se libertar para avançar. O mesmo tom de escracho reaparece no artigo de novembro passado.

Um economista de viés liberal tem várias maneiras de combater uma linha de pensamento como a que embasou a PSI. A pior das maneiras, porém, é a que fez Franco em seu referido artigo. Ele buscou, ardilosamente, distorcer os argumentos e ações e montar debates irreais no passado para, então, saltar até o presente e mostrar como "os dados provam" a verdade de um dos lados daquele debate distorcido. Para dar mais credibilidade, Franco coloca-se a si mesmo no passado no que chama de "lado errado", isto é, o dos defensores da PSI. Assim o artigo contém uma espécie de "mea culpa".

A intenção do livreto de Franco foi mostrar que ele mesmo (Gustavo Franco) já teria flertado com o “pecado” no passado, isto é, com o protecionismo, mas que há anos mudou de lado. Para Franco, é hora agora de o País mudar de lado também e avançar para estar em consonância com o mundo moderno, especialmente dos países avançados.

O exemplo da Coréia

No artigo de novembro de 2015, Franco faz referencia à Coreia, que teria aplicado a bíblia neoliberal, cujo ensinamento original reside na fiel adesão à Teoria das Vantagens Comparativas de David Ricardo (economista do início do séc. XIX).

É notável, neste sentido, a extraordinária omissão por parte de Gustavo Franco do papel da reforma agrária e do investimento pesado na Educação desde os anos 1950 na Coréia, conforme, entre outros, apontam Chris Freeman e Luc Soete, no livro “A Economia da Inovação Industrial”. No evangelho de Franco, tudo se resume a "Abertura ou Fechadura". Sobre a experiência da Coréia, vale a pena recuperar os trabalhos de Ha-Joon Chang, que apontam para uma interpretação muito distinta da visão superficial apontada por Gustavo Franco.

O neoliberalismo possui grande poder de persuasão, mas deve parte disso à distorção sistemática de argumentos e fatos do passado. Infelizmente, os economistas heterodoxos têm sido menos agressivos no desmascaramento desses mecanismos, muitas vezes sinuosos e escorregadios. Uma das tentativas nesse sentido pode ser lida no artigo de Roberto Vital Anav, “Estado e mercado: uma resenha histórica” (disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/085/85anau.htm).

Neoliberalismo e ideologia

O neoliberalismo é uma ideologia, muito mais que uma teoria. Teorias, por suposição, devem ser expostas ao teste empírico (da prática) e sofrer alterações ou refutações em face desse teste. Todas as grandes crises e mudanças econômicas ensejaram mudanças de paradigmas teóricos. Da Grande Depressão emergiu a Revolução Keynesiana; da estagflação do final dos 1970 surgiram os novos clássicos e sua Teoria das Expectativas Racionais, a matriz neoliberal.

Estamos em uma época crítica para economistas e historiadores econômicos. Vivenciamos, em 2008, uma crise mundial de grandes proporções, desde a Depressão de 1929. Sua relação com o paradigma neoliberal, de desregulamentação geral, foi testemunhada pelo próprio Alan Greenspan, ex-presidente do Banco Central dos EUA durante a era neoliberal, que afirmou no Senado daquele país, assim que a crise financeira eclodiu: "estamos incrédulos, em estado de choque" (BBC Brasil, 23/10/2008).

Entretanto, os defensores do neoliberalismo, tão entrelaçado com as causas da crise, nada alteraram em suas análises e suas recomendações. Ao contrário, parecem estar ainda mais convencidos de que o mundo necessita "mais do mesmo".

Em entrevista à Revista Carta Maior, Maria da Conceição Tavares, uma das maiores economistas do Brasil, clama: “Vivemos um colapso neoliberal sob o tacão dos ultra-neoliberais. Não estamos falando de gente normal, é preciso entender isso. Não são neoliberais comuns. (...) É a treva! Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva! E ela se espalha desagregando, corroendo”.

Essas palavras de Maria da Conceição nos alertam para os riscos do retorno das ideias de Gustavo Franco, o “revisor” da história sob o ponto de vista do dogma neoliberal.

Não custa lembrar que foi sob o comando da equipe da qual fazia parte Gustavo Franco que o Brasil teve uma segunda "década perdida" em termos de crescimento econômico e geração de empregos. Também foi ele que manteve por longo período a valorização cambial (1994-1998) que asfixiou e fechou centenas de empresas, eliminou cerca de 50% dos empregos industriais, e nos manteve reféns do capital especulativo, agora necessário para fechar o Balanço de Pagamentos, inchado pelo excesso de importações.

O resultado da política pregada e aplicada por Franco é que acabamos voltando à UTI do FMI no final de 1998, momento em que ele se retirou do Governo e voltou à universidade para pregar "mais do mesmo" e, não por acaso, montar, em 2000, empresa - Rio Bravo Investimentos – com o objetivo de prestar serviços na área de investimentos financeiros, aquisições, fusões, securitizações.

Esperamos que o credo neoliberal persistente de Franco, incorporado ao Governo Federal, incorporado ao Governo Federal, seja objeto de outras críticas, além desta, visando a defesa da economia, das empresas e dos empregos brasileiros.

Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. e atual Gestor da Escola de Negócios (Adm,, Cienc. Cont, Econ. e Com. Ext.) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).

Roberto Vital Anav é Prof. Ms na USCS, doutorando na UFABC e Prof. da USCS.

Artigo a ser publicado no site do ABCDMaior em 27/3/2017

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