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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

EU VEJO O FUTURO REPETIR O PASSADO...


Jefferson José da Conceição

O poeta Cazuza, que nos deixou tão cedo, escreveu os versos de “O tempo não para” no final dos anos de 1980. Quase três décadas depois, a música está atualíssima em face da presente realidade brasileira e da que se projeta.

Minha hipótese é que o Brasil, em alguma medida, repete hoje, na economia, o que vivemos em 1964, após o golpe militar.

Valem os contrapontos entre os ambientes políticos de 1964 e 2016. Em 2016, diferentemente de 1964, não houve tanques militares nas ruas, embora haja grupos que não se cansam de chamá-los. Entretanto, não há (por ora) guerra fria nem suposta ameaça comunista. Mais do que em 1964, o processo de 2016 tem vernizes de legalidade, legitimado pelo legislativo, judiciário e grande mídia.

Tal como em 1964, o período que antecedeu a ruptura institucional de 2016 foi marcado pela geração de um quadro político e social bastante conturbado e radicalizado, com o consequente acirramento de conflitos entre os vários grupos do espectro político. Em 1964, tínhamos a Marcha da Família com Deus, pela Liberdade e Propriedade. A luta era contra os vermelhos. Jango era o presidente a ser deposto. Em 2016, tivemos as passeatas verde e amarela, puxadas por um patinho que não quer “pagar o pato” e é contra todos os "corruptos". A luta também foi contra os “vermelhos”. Lula e Dilma, os presidentes da vez.

Em 1964, a esquerda defendia as “reformas de base” – reforma da educação, reforma agrária, reforma tributária entre outras -, que, de acordo com aquela visão, seriam capazes de alterar o péssimo quadro da distribuição de renda e de propriedade, permitindo a retomada do crescimento econômico (a economia estava estagnada nos primeiros anos da década de 1960) em bases inclusivas e de ampliação da cidadania. Em 2016, a esquerda, em sua maioria, defendeu as políticas sociais implementadas pelos Governos Lula e Dilma: Bolsa Família, Política de Valorização do Salário Mínimo, Minha Casa Minha Vida, Prouni, FIES, Pronatec, entre outras.

O livre mercado, as privatizações e a austeridade nos gastos públicos foram algumas das principais bandeiras de 1964 e voltaram a ser em 2016.

O golpe de 1964 interrompeu o processo democrático no País que havia sido retomado em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial. Em 2016, o impeachment da Presidente Dilma também representou um desvio da democracia no Brasil. Haverá quem questione esta última afirmação. Entretanto, há no presente claras evidências de um estado de exceção no país. A caçada judicial ao ex-Presidente Lula é, a meu ver, um dos sinais mais nítidos – mas não o único – deste ambiente de anormalidade.

Meu ponto de vista, já exposto em artigos anteriores, é de que houve sim um golpe em 2016, tendo em conta que o processo de impeachment foi meticulosamente planejado pelos segmentos conservadores e ocorreu sem a comprovação de crime de responsabilidade da Presidente Dilma. Portanto, assistimos a uma espécie de “golpe branco”.

Mas não é o caso aqui de fincar pé na ideia de que a posse do Presidente Temer em 2016 ocorreu por meio de um golpe de Estado. O mais importante é destacar que a semelhança maior de 2016 com os acontecimentos de 1964 está, isto sim, na ruptura radical com um sistema de forças políticas que alicerçavam o governo anterior e o forte controle pelo novo governo das principais decisões tomadas pelo Executivo, Legislativo e Judiciário. Este forte controle é o que permite, por sua vez, no campo econômico, a busca de aprovação de reformas profundas cujo objetivo é viabilizar um novo ciclo de crescimento econômico, porém em bases certamente mais excludentes. Nesta perspectiva, 2016 repete 1964.

O PAEG e o arrocho salarial

Em 1964, o Plano de Ação Econômica Governamental (PAEG) - liderado por Roberto Campos (Ministro do Planejamento) e Octávio Gouveia de Bulhões (Ministro da Fazenda), e, alguns anos depois, por Delfim Netto e Mário Henrique Simonsem - implementou uma série de reformas institucionais que visavam propiciar um novo ciclo de crescimento capitalista no Brasil. As reformas eram tidas como necessárias para constituir uma nova estrutura institucional no País.

No diagnóstico do PAEG, a crise do início da década de 1960 era resultado sobretudo da instabilidade política reinante, que se refletia em medidas econômicas que desestimulavam a produtividade, a poupança, os investimentos e a entrada de capitais. Isto resultava, na visão do Plano, em déficits públicos elevados (sobretudo em função do descontrole de gastos), expansão demasiada do crédito, aumento de salários superiores à produtividade. Para os formuladores do PAEG, era importante reconstituir a lógica do “mercado”, bem como as políticas fiscais e monetárias comprometidas com a estabilidade monetária.

O arrocho salarial após 1964 ocorreu por meio de políticas como conversão dos salários pela média; fixação de índices de reajuste determinados pelo governo (que sempre eram fixados abaixo da inflação efetiva); princípio da anuidade como período mínimo para os reajustes salariais; intervenção e repressão aos sindicatos; fim da estabilidade após dez anos de emprego e sua substituição pelo FGTS.

Certamente o controle dos salários a partir de 1964 foi uma das razões pelas quais o forte crescimento verificado entre 1968 e 1973, no chamado “milagre econômico brasileiro”, ocorreu simultaneamente à queda da inflação e à piora na distribuição de renda.

Registre-se ainda que, facilitado pelo amplo controle exercido sobre o legislativo e pelo ambiente autoritário da época, o PAEG  promoveu, além das reformas trabalhistas, importantes reformas também no campo fiscal e monetário, bem como  na estrutura do sistema financeiro: introdução da correção monetária nos títulos públicos e privados; reforma tributária com a redefinição da cobrança entre as esferas de governo; criação de novos impostos; introdução de vários incentivos fiscais; nova lei de remessas de lucros; definição e redistribuição das tarefas das instituições financeiras; criação de novas instituições financeiras (como o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central e o Banco Nacional de Habitação); ampliação das modalidades de crédito, entre outras.

As Reformas trabalhistas e Previdenciárias e a eleição dos perdedores

Em 1964, a Revolução decretou o fim das políticas que denominava de “populistas”. Em 2016, o Governo Temer desmonta as políticas sociais e aprova a limitação dos gastos públicos que atingirá principalmente as políticas sociais em um prazo de pelo menos 20 anos.

As reformas em curso em 2016 (trabalhista, previdenciária, fiscal), tocadas a toque de caixa pelo Governo Temer, que afetarão o futuro do País por longo período, guardam semelhança com as reformas de mais de cinquenta anos atrás, na chamada “Revolução de 1964”.

Evidentemente, as medidas não são exatamente as mesmas (embora também aqui haja paralelos). O paralelismo reside em que, tal como em 1964, as Reformas de 2016 objetivam criar condições para a retomada do crescimento por meio do reequilíbrio das contas públicas (com o controle de gastos, de um lado, e o aumento das receitas, de outro), e, de modo mais geral, por meio da redução dos custos com o trabalho (salários, benefícios, direitos) e com os demais gastos sociais. Em outras palavras, as reformas de 2016, tal como as de 1964, elegem claramente ganhadores e perdedores. Tanto no passado quanto no presente, a classe trabalhadora está entre os perdedores.

Em “As Reformas Trabalhistas: ataque aos direitos”, publicado em 26/9/2016, tratei das reformas trabalhistas em discussão rápida pelo Governo Temer e sua base aliada. Destacamos: 1) o debate sobre a flexibilização e a ampliação da jornada de trabalho; 2) o Projeto de Lei que estabelece a prevalência do negociado sobre o legislado; 3) a tentativa de desmantelamento do movimento sindical por meio de Projetos de Lei que, sem qualquer negociação prévia com o movimento sindical, tornam facultativa a contribuição sindical; 4) o Projeto de Lei que autoriza a terceirização em todas as áreas da empresa; 5) o Projeto de lei que cria o trabalho intermitente, de forma que o empregado permanecerá à disposição da empresa e pode ser chamado a qualquer momento para trabalhar; 6) a PEC que trata o jovem entre 14 e 16 anos de idade como empregado em tempo parcial; 7) o Simples Trabalhista, que cria as condições para a legalização de trabalhadores de “segunda categoria” nas micro e pequenas empresas, já que será possível haver acordos coletivos específicos com pisos diferenciados (menores), bem como supressão do adicional de horas extras, PLRs diferenciados (mais reduzidos) e trabalho aos sábados e domingos; 8) o Estatuto das Estatais, que proíbe que o representante dos empregados nos Conselhos de Administração dessas empresas sejam também dirigentes sindicais; 9) a decisão do Supremo Tribunal Federal, no final de outubro, de que os servidores públicos que entrarem em greve podem ter os salários imediatamente cortados, sem a necessidade de prévia decisão judicial; 10) a proposta de regulamentação da emenda constitucional 81/2014, do trabalho escravo, que propõe a supressão da jornada exaustiva e trabalho degradante das penalidades previstas no artigo 149 do Código Penal (PL 3842/2012 – Câmara, PL 5016/2005 – Câmara e PLS 432/2013 – Senado);. 11) o Projeto de Lei nº 5230/2013, que tem como foco as relações de trabalho nos salões de beleza, que acaba com o vínculo trabalhista entre patrões e empregados, substituindo-o pelo conceito de “parceiros” - que bem pode ser reivindicado pelos patrões de outros segmentos da economia.

Em “Reforma da Previdência: impactos na aposentadoria e no mercado de trabalho”, de 11/10/2016, tratei de alguns aspectos da reforma previdenciária proposta pelo Governo Temer. De acordo com o que membros do Governo já veicularam na imprensa, a Reforma da Previdência contemplará, entre outros pontos: elevação da idade mínima de aposentadoria para trabalhadores do setor privado e do funcionalismo; nova fórmula de cálculo do benefício; elevação do tempo mínimo de contribuição; redução da diferença de regras de idade de aposentadoria entre homens e mulheres, com a unificação futura; eliminação das aposentadorias especiais de professores, militares, policiais militares e bombeiros; redução dos benefícios da pensão por morte; contribuição obrigatória para trabalhadores rurais, bem como elevação da idade mínima para que estes se aposentem; desvinculação dos reajustes dos benefícios assistenciais (LOAS) e dos reajustes da pensão por morte da política de reajustes do salário mínimo; fim da paridade de reajuste entre servidores ativos e inativos.

Como comprovar que a classe trabalhadora é a perdedora de 2016, assim como foi em 1964?

Assim como o fizeram muitos estudos sobre o período pós 1964, há várias maneiras de se levantar e quantificar o tamanho das perdas e ganhos do conjunto de reformas que vêm sendo instituídas a partir de 2016, bem como os segmentos perdedores e ganhadores do processo.

Ouso dizer que, permanecendo o curso das mudanças, um dos melhores indicadores será o que mede a concentração de renda, o chamado índice de Gini. 

Este índice - que varia de zero a 1 (quanto mais próximo de zero, mais igualitário o país; quanto mais próximo de 1, mais desigual ele é), piorou no país a partir de 1964 até a década de 1990. O índice de Gini subiu de 0,497 nos anos de 1960 para 0,565 na década de 1970; 0,592, na década de 1980; e 0, 637 na década de 1990.

Em outras palavras, após 1964 e durante três décadas (até a implementação das políticas sociais dos Governos Lula e Dilma), o Brasil até cresceu, mas a desigualdade aumentou expressivamente, com reflexo na piora da educação, saúde, moradia, transporte e condições de vida em geral da grande maioria dos brasileiros.

Como resultado das reformas de 1964, no auge do milagre econômico brasileiro, entre 1970 e 1972, a parcela da renda dos 60% mais pobres da população brasileira caiu de 20,9% para 16,8%, enquanto a parcela dos 10% mais ricos da população subiu de 46,7% para 52,6%.

Meu temor é de que, a partir das reformas de 2016, estamos seguindo o mesmo caminho que trilhamos meio século atrás, tal como vislumbrou o inesquecível Cazuza.

Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS e atual Diretor Técnico da Agência São Paulo de Desenvolvimento. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre jan.2009 e jul. 2015. Foi Superintendente do Instituto de Previdência do Município de São Bernardo do Campo- SBCPrev entre ago.2015 e fev.2016. Economista licenciado do DIEESE.

Artigo publicado no site do ABCDMaior, coluna blogs (Ponto de (des)equilíbrio), em 27/12/2016.

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