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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O CAPITAL NÃO É GELEIA


Jefferson José da Conceição (jeffdacsenior@gmail.com)

As ideias liberais têm sido apresentadas pelas atuais autoridades econômicas brasileiras como antídoto para os supostos males gerados pelas políticas econômicas e sociais “excessivamente regulamentadoras do mercado”. Na lógica do atual Governo, as políticas econômicas e sociais das gestões anteriores não teriam sido “market friendly”. Neste discurso, o Governo conta com o apoio de outras instancias de poder: Partidos, Congresso, STF, entre outras.

Este  ambiente interno pró "mercado" é o que orienta as Reformas da Previdência e Trabalhista, a aprovação da PEC que limita os gastos públicos por 20 anos, a flexibilização na produção e exploração do petróleo, entre outras iniciativas do Governo.

Nesta toada, as autoridades e a intelectualidade de formação liberal costumam acusar os intelectuais contrários ao liberalismo de atrasados e de realizar políticas distorcidas e ineficazes. Muitas vezes, os liberais referem-se aos EUA como exemplo a ser seguido para atingirmos nosso desenvolvimento.

Por tudo isto, estou a procura de comentários de representantes do liberalismo brasileiro sobre as ações do Presidente Donald Trump, recém-empossado. No primeiro mês de seu governo, Trump deu ordens para construir o muro na fronteira com o México (retomando a prática dos feudos) ; retirou os EUA do bloco do Transpacífico (que visava incrementar o comércio em um grande número de países que compõe o acordo); decretou controle de migração de refugiados e cidadãos de países de maioria muçulmana (o que significa impor barreira ao livre fluxo da força de trabalho).

Os depoimentos de Trump no último dia 17/2/2017 devem ter sido ainda mais intragáveis para os nossos liberais de plantão. Em evento na Carolina do Sul, Trump disse: “as empresas que demitirem americanos e levem suas operações para o exterior terão uma punição substancial (...). Brigarei por cada um dos empregos americanos”.

Mais: ainda na campanha eleitoral, Trump declarou que sobretaxaria produtos feitos no exterior em nações que tivessem custos de produção menores e, desde esses países, exportassem estes produtos para os EUA. De acordo com a imprensa, empresas como GM, Ford, e Walmart entenderam o recado e retraíram projetos na Ásia e na América Latina. Estes projetos, ao que parecem, serão agora realizados em fabricas americanas.

Evidentemente, não me alinho entre aqueles que admiram Donald Trump. Ao contrário, creio que os EUA e o “resto do mundo”, com Trump, viverão uma instabilidade política e econômica acentuada. O cenário internacional tornou-se muito complexo.

Entretanto, meu objetivo aqui ao citar Trump foi apenas o de mostrar as contradições do discurso liberal. Os EUA definitivamente não seguem hoje uma política de liberdade econômica internamente às suas fronteiras e tampouco nas suas relações internacionais.

Outro depoimento digno de registro na semana foi o do ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional - FMI, Olivier Blanchard, em entrevista à Folha de São Paulo, publicada em 19/2/2017. Certamente ninguém acusará o FMI de instituição vinculada a marxistas, esquerdistas ou mesmo desenvolvimentistas. Isto torna ainda mais emblemáticas as afirmações. Na entrevista, Blanchard, que liderou o FMI entre 2008-2015, admite"um possível acordo para a taxação de fluxos de capitais em situações emergenciais" e sustenta que cabe regulação flexível do setor bancário, "com regras mais rígidas em períodos de expansão e menos estritas nos momentos de desaceleração";

Diante do que dizem personalidades como Trump e Blanchard, e comparando com o que vivem repetindo os nossos liberais de plantão, podemos concluir que os liberais brasileiros querem ser mais realistas que o rei. 

A necessidade de regulamentar o fluxo de capital

Os depoimentos de Trump também me fizeram retomar neste artigo considerações que eu já havia levantado, aqui no blog, em junho do ano passado a respeito do nosso questionamento ao pressuposto de que o capital tem e deve ter total flexibilidade. Discordamos da plena flexibilidade ao capital, às empresas.

A nosso ver, em uma sociedade civilizada, o capital - seja ele produtivo ou financeiro -  deve ser estimulado sim a acumular lucros, investir e crescer (e desta forma gerar inovações, desenvolvimento, renda e empregos); mas deve também cumprir exigências impostas pela sociedade, como parte do pacto social que visa evitar a barbárie (o desemprego, o vazio nas cidades; a quebra de relações com fornecedores, agências de desenvolvimento local, universidades, entre outras instituições).

Incluo-me entre aqueles que acreditam que, mesmo em uma economia capitalista, a sociedade deve instituir padrões civilizatórios mínimos. Isto significa que a propriedade e as decisões empresariais devem também cumprir uma função social. Aliás, é isto que, no Brasil, prega a Constituição Federal em seu artigo 170 em seu inciso 3.

Nos parágrafos a seguir retomamos nossas propostas de regulamentação dos casos em que ocorrem fechamento de plantas das empresas.

Nossas propostas de regulamentação em situações de fechamento de plantas das empresas

As propostas aqui apresentadas visam regulamentar as decisões de ir e vir das empresas em relação às suas plantas produtivas, maquinários e pessoas, de uma localidade para outra, por meio de fechamento de fábricas (plantas, unidades produtivas) e sua transferência para outra localidade. O capital não é uma geléia que pode ir livremente de lá para cá, como um processo natural em busca de um suposto “equilíbrio” sem traumas.

Nossas propostas chocam-se, é claro, com o pressuposto de que a decisão da desinstalação e transferência de uma unidade produtiva é de responsabilidade exclusiva da empresa. Na visão liberal, nesta decisão não cabe a obrigatoriedade da empresa ouvir o território (município, região, Estado, País) e instituições sociais nele presentes (governos, sindicatos, demais empresas, instituições de ensino e pesquisa, entre outros). Desde que pagos os impostos e os direitos trabalhistas, não cabe ao território e às instituições interferirem no processo.

Por conseguinte, como se verá, as proposições que apresento neste artigo vão na contramão dos princípios e das ideias liberais ou neoliberais.

Os liberais em geral acreditam que a função social da empresa é cumprida quando ela gera empregos, recolhe tributos e gera retorno para seus acionistas, estimulando sua continuidade. Nós, economistas não alinhados com as ideias neoliberais, entendemos que a função social da propriedade vai muito mais longe: ela inclui a responsabilidade social e ambiental.

Uma decisão unilateral que só considera o lucro dos acionistas e deixa uma comunidade no abandono, desempregada, privada das receitas tributárias e do incentivo à atração de fornecedores e prestadores de serviços, acrescentando o problema dos vazios urbanos e galpões inativos para a própria comunidade solucionar, não corresponde absolutamente ao conceito de função social da propriedade inscrito na Constituição.

A expansão recente do fechamento e transferência de fábricas no Brasil

Mais de 4450 indústrias de transformação, dos mais diferentes portes e segmentos, “fecharam suas portas” em 2015 no Estado de São Paulo. Este número de encerramento de plantas industriais é 24% superior ao verificado em 2014, quando 3.584 fábricas deixaram de operar. Os números são da Junta Comercial e foram veiculados pela imprensa no início deste ano. As informações referem-se ao Estado, mas o fenômeno acontece em todo o país.

Em alguns casos, o fechamento puro e simples da unidade produtiva é o único movimento realizado pela empresa. Em outros, verifica-se fechamento da unidade e transferência das atividades para outras localidades. Segundo as empresas, na grande maioria dos casos o agravamento da crise da economia brasileira é a causa principal do fechamento de fábricas.

Este processo é muito preocupante, porque o expressivo número de encerramento de fábricas não se observava no Brasil desde os draconianos tempos de crise e reestruturação produtiva da década de 1990, quando vivíamos sob a hegemonia das políticas neoliberais. A preocupação com a crise atual da indústria brasileira (e o consequente fechamento de fábricas) cresce ainda mais porque a tendência é o seu agravamento, em função do acirramento da crise econômica.

São vários os exemplos recentes de fechamento de fábricas pelo país. Citaremos apenas alguns dos casos para ilustrar.

Na Região do ABC, o Grupo SEB (cuja sede fica na França) declarou, no último dia 16/02/2017, que irá fechar a tradicional fábrica da Panex em São Bernardo. São aproximadamente 200 trabalhadores na planta que terão seus empregos eliminados. O grupo é dono de marcas como Arno, Clock, Panex e Rochedo. De acordo com a empresa, a produção que é feita em São Bernardo será transferida para “a nova planta de Itatiaia, na região sul do Rio de Janeiro. Os trabalhadores da Panex reagiram imediatamente e estão acampados na frente da fábrica, com o objetivo de impedir a saída de maquinário e realizar tratativas para a manutenção da unidade.

Em abril de 2016, foi anunciado o fechamento da tradicional fábrica de produtos Arno no bairro da Moóca, na Cidade de São Paulo. De propriedade do Grupo SEB, a fábrica produzia eletroportáteis (liquidificadores, aspiradores, ventiladores etc.) e empregava 625 pessoas. Mais de 450 empregos foram afetados em função da transferência das atividades de produção para Itatiaia, no sul do Rio de Janeiro. A princípio, as fábricas do mesmo grupo localizadas em São Bernardo do Campo e em Jaboatão (PE) continuariam operando sem alterações. O Grupo SEB é também detentor das marcas Panex, Krups, Clock, Rochedo, T-Fal e Lagostina.

Ainda no Estado de São Paulo, outros exemplos emblemáticos de fechamentos de fábricas ocorreram em Guarulhos, Americana, Jacareí e Sorocaba. Em Guarulhos, as empresas metalúrgicas Eaton, Maxion e Randon anunciaram encerramento de atividades produtivas e plantas industriais. Em Americana, a Polyenka, empresa fabricante de produtos têxteis, que chegou a ter mais de dois mil empregados no final da década de 1990, declarou, em janeiro deste ano, o encerramento das atividades. Em Jacareí, outro fabricante de produtos têxteis, a Rhodia (do grupo Solvay), já havia decidido fechar a fábrica na cidade e concentrar a produção em Santo André. No segmento siderúrgico, a Gerdau também anunciou, em julho de 2014, o fechamento de sua fábrica em Sorocaba, com a transferência da produção do laminador para a fábrica da empresa em Mogi das Cruzes.

No Paraná, apenas para citar um exemplo fora de nosso estado, a PK Cables do Brasil, empresa de autopeças, produtora de componentes elétricos (chicotes), anunciou, em dezembro de 2015, a desativação de sua produção em Curitiba. O mesmo grupo já tinha havia encerrado as atividades em Itajubá (MG).

Regulamentar o fechamento e transferência de fábricas

Em 2001, quando ainda era assessor do DIEESE no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ajudei a elaborar propostas sobre o assunto do fechamento e transferência de fábricas. A intenção era provocar o debate e propiciar subsídios às discussões do movimento sindical, entidades representativas do empresariado brasileiro e poderes executivo, legislativo e judiciário. Na prática, nosso objetivo era oferecer um norte para a elaboração de um Código de Conduta Social (a ser transformado em Lei), que regulamentasse o fechamento e a transferência de estabelecimentos produtivos no Brasil. Transcorridos quase duas décadas, as proposições continuam válidas, a nosso ver.

As causas e consequências que envolvem o fechamento de fábricas foi o tema do meu livro “Quando o apito da fábrica silencia: sindicatos, empresas e poder público diante do fechamento de indústrias e da eliminação de empregos na Região do ABC” publicado pela Editora ABCDMaior em 2008. O livro, cuja edição impressa está esgotada, pode ser eletronicamente obtido na íntegra em http://blogjeffdac.blogspot.com.br

Proposta de Código de Conduta Social para as empresas que realizam fechamento e transferência de estabelecimentos produtivos no Brasil

Os inúmeros estabelecimentos produtivos (...) desativados nos últimos anos no país, e os efeitos perversos dessas desativações sobre regiões e comunidades inteiras tornam nítida a necessidade da revisão das regras que regem a abertura e o fechamento de estabelecimentos produtivos no Brasil.

Em um ambiente de desmedida flexibilidade das leis, acompanhado muitas vezes pelas benesses da guerra fiscal, verifica-se a ampliação de processos de “racionalização” da produção promovida pelas grandes empresas estrangeiras e nacionais. Entre esses processos está a transferência da atividade produtiva de uma localidade para a outra, isto é, determinado estabelecimento é fechado e a sua produção (normalmente acompanhada do maquinário) repassada para outros estabelecimentos da mesma empresa ou grupo econômico.

As empresas argumentam que a transferência de estabelecimentos não traz perda para o país como um todo, à medida que os empregos, os tributos e a tecnologia seriam meramente deslocados de uma região para outra. Sabe-se, no entanto, que isso não acontece. Na maior parte dos casos, tem ocorrido perda líquida de empregos. Perdem-se também os poucos centros de pesquisa e desenvolvimento instalados nas antigas áreas. Por fim, a guerra fiscal trata de reduzir a arrecadação em geral.

Os efeitos das desativações sobre as comunidades costumam ser catastróficos e via de regra não fazem parte do cálculo empresarial: o desemprego, a queda de arrecadação, a diminuição da qualidade de vida e os vazios urbanos (na forma de galpões abandonados nas cidades) são apenas alguns deles. Anos de desenvolvimento tecnológico e de know-how dos trabalhadores e fornecedores são relegados ao segundo plano.

As propostas que se seguem visam subsidiar o debate na sociedade brasileira para a elaboração de projeto de lei para regulamentar a transferência de unidades produtivas no país.

As propostas

1 Aviso prévio: A empresa avisará aos sindicatos de trabalhadores e autoridades locais (Prefeitura, por exemplo), com antecedência mínima de 12 meses, da intenção de encerrar as atividades produtivas de determinado estabelecimento produtivo e a transferência da produção para outras unidades da empresa ou grupo econômico.

2 Transferência dos empregos: Aos trabalhadores da planta em desativação será obrigatoriamente oferecida pela empresa a opção de realocação para outra unidade produtiva da empresa no país, ou em seus fornecedores, quando houver acordo para isso. Os funcionários terão a garantia de realocação em função compatível com a que possuíam na antiga unidade, ressalvados os casos de promoção. No caso da aceitação pelo funcionário do seu deslocamento geográfico para outra unidade produtiva no país, será concedida estabilidade no emprego por 24 meses contados a partir da data do seu deslocamento.

3 Voluntariado: A demissão voluntária, quando ocorrer, deverá ter o pagamento mínimo de x% do salário mensal para os trabalhadores que tiverem acima de “y” anos de tempo de casa; e de z% para os trabalhadores com tempo de casa inferior.

4 Garantia de curso de requalificação: Para os trabalhadores do voluntariado, a empresa deverá garantir curso de requalificação, a ser formulado em conjunto com o sindicato de trabalhadores da respectiva categoria profissional.

5 Cooperativas: Sempre que não houver um comprador imediato das instalações e do maquinário do antigo estabelecimento produtivo que viabilize o prosseguimento das atividades e dos empregos, os trabalhadores demitidos pela antiga empresa terão direito à compra dos respectivos ativos, visando à constituição de cooperativas de trabalhadores. Essa compra contará com a facilitação das verbas rescisórias e com a criação de linhas de financiamento diferenciadas por parte do BNDES.

6 Revitalização dos “vazios urbanos”: A empresa que realizar transferência de estabelecimentos ficará responsável pelo pagamento do IPTU integral da mesma área, pelo período de mais dois anos, a partir da data do encerramento das atividades de produção. Durante esse período, o recurso deverá ser obrigatoriamente utilizado pela prefeitura para o apoio a projetos de revitalização da área, especialmente na forma de atração de novas unidades produtivas no local.

7 Recuperação ambiental: As áreas desativadas por processos de transferência de estabelecimentos serão objeto de laudo ambiental realizado pela Prefeitura local. Os custos para a realização desses laudos serão pagos pela empresa que realiza a transferência. Nos casos em que forem diagnosticados problemas ambientais, fruto da atividade produtiva anterior, a Prefeitura deverá prever os recursos financeiros necessários para a recuperação ambiental da área. Esses recursos serão cobrados da empresa que realizou a transferência e somente poderão ser utilizados para esse fim.

8 FAT: Não será permitida a captação de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para gastos relativos ao fechamento de estabelecimentos produtivos, tais como pagamento de verbas rescisórias.

9 Multa: o não cumprimento dessa lei tornará a empresa sujeita à multa”.

Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. e atual Gestor da Escola de Negócios (Adm,, Cienc. Cont, Econ. e Com. Ext.) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo (jan.2009-jul.2015); Superintendente do SBCPrev (agos.2015-fev.2016); Diretor Técnico da Agência São Paulo de Desenvolvimento (mar.2016-jan.2017). Economista licenciado do DIEESE.

Publicado no site do ABCDMaior, em 20/2/2017.

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