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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL SÃO BOAS PARA POBRES E NÃO POBRES

Jefferson José da Conceição (jefferson.pmsbc@gmail.com)

Recentemente, logo após ter entrado em sala, eu ligava o computador para ministrar mais uma aula de Economia, quando ouvi um diálogo entre alunos. Passei a prestar atenção, pois o tema referia-se a uma das controvérsias atuais do debate econômico. Aos poucos, fui ficando estarrecido, pois uma aluna assumia, de modo quase automático e acrítico, uma posição absolutamente contrária aos programas estatais de proteção social, como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, a Política de Valorização do Salário Mínimo e o Seguro Desemprego. De acordo com a visão (distorcida) de minha aluna, programas sociais como estes, que marcaram os governos de Lula e Dilma, só servem para gerar acomodação por parte dos mais pobres e representam um custo injusto com aqueles que mais se esforçam. O ataque frontal se refere principalmente às políticas sociais daqueles governos, mas o argumento pode atingir também programas como o Sistema Único de Saúde, fruto da Constituição de 1988, com os seus princípios da universalidade e gratuidade.

Minha aluna – talvez até sem o saber ainda - reproduzia quase fielmente as teses da escola neoliberal, que vê, nestes programas, mais um erro derivado do intervencionismo estatal. Para os neoliberais, as políticas de proteção social (ou de bem-estar social, como são mais conhecidas na literatura) conduzidas pelo Estado somente contribuem para gerar ineficiências na produtividade econômica (no caso a acomodação dos mais pobres) e na alocação de recursos (pois o dinheiro público poderia ser melhor investido). Ainda na visão neoliberal, estas políticas reduzem a importância de valores fundamentais como a “meritocracia” e a “igualdade de oportunidades”. No final das contas, estes programas aumentam indevidamente os gastos do governo e, consequentemente, os déficits públicos.

Ao ouvir, de soslaio, esta conversa entre os alunos, e a dura posição de minha aluna, imediatamente lembrei-me de um texto de um dos mais brilhantes economistas contemporâneos, o coreano Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge. Chang é autor de vários livros polêmicos - pois eles põem em xeque a ortodoxia dos manuais de economia que se baseiam no princípio neoclássico da soberania do mercado e do consumidor. Seu livro mais conhecido é “Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica” (Editora Unesp, 2004). Neste livro, Chang mostra que, ao longo da história, após terem posto em ação várias medidas de natureza nada liberais (pirataria, sequestro de cientistas, elevada taxação sobre produtos importados, cotas, proibições à livre circulação de mercadorias etc) para estruturarem sua indústria, os países desenvolvidos passaram a recomendar o liberalismo como solução para o desenvolvimento dos países desenvolvidos.

 O texto específico que fazemos menção neste artigo (“O governo poderoso torna as pessoas mais abertas às mudanças”) é um dos capítulos do seu livro “23 coisas que não nos contaram sobre o capitalismo”, publicado em 2013 pela Editora Cultrix. Neste capítulo, Chang procura sustentar o argumento de que, ao contrário do que prega o discurso neoliberal contrário às políticas de proteção social (bem-estar social, ou Welfare State, em inglês), baseado em um suposto “bom senso” aparente, as políticas de proteção social não são só boas para os pobres, mas também para os não pobres. Para Chang, as políticas de bem estar social servem para aumentar a eficiência do sistema econômico capitalista como um todo.

Antes, porém, de reproduzir o capítulo, vale apena remeter o leitor a trecho da introdução do livro de Chang, no qual o autor diz:

“[Este livro] questiona muitas teorias econômicas e fatos empíricos reconhecidos que (...) se aceitam como fato consumado. Embora um leitor não especializado possa achar intimidante que lhe seja pedido que questione essas teorias apoiadas por “especialistas” e que desconfie de fatos empíricos aceitos pela maioria dos profissionais da área, você descobrirá que isso é na realidade bem mais fácil do que parece, tão logo você pare de pressupor que o que a maioria dos especialistas acredita precisa necessariamente estar certo. A maior parte das questões que discuto neste livro não tem respostas simples. Na realidade, em muitos casos, o meu argumento é que não existe uma resposta simples, ao contrário do que os economistas que defendem o livre mercado desejam que acreditemos. Não obstante, a não ser que encaremos essas questões, não perceberemos como o mundo realmente funciona. E a não ser que entendamos isso, não seremos capazes de defender os nossos próprios interesses e, muito menos, de fazer um bem maior como cidadãos econômicos ativos”.

Portanto, Chang nos convida à reflexão aberta, a ter a ousadia de questionar o que é aparentemente óbvio segundo a corrente dominante (a mainstream) de pensamento neoclássico.

Como veremos a seguir, Chang estrutura o mencionado capítulo da seguinte maneira: primeiramente, ele expõe o que os defensores do pensamento neoliberal pensam. São os mitos a serem enfrentados. Em seguida, ele apresenta “o que eles [os neoliberais] não dizem”.

Assim, esta coluna abre espaço às palavras do Professor Chang, reproduzindo a seguir na íntegra aquele capítulo da sua obra:

“O QUE ELES [NEOLIBERAIS] DIZEM

O governo poderoso é mau para a economia.  O estado do bem-estar social emergiu devido ao desejo dos pobres de ter uma vida mais fácil fazendo com que os ricos paguem pelos custos dos ajustes que são constantemente exigidos pelas forças de mercado.

Quando os ricos são tributados para pagar pelo seguro-desemprego, os cuidados com a saúde e outras medidas voltadas para o bem-estar social dos pobres, além de tornar os pobres preguiçosos e privar os ricos de um incentivo para criar a riqueza, isso também torna a economia menos dinâmica. Com a proteção do estado do bem-estar social, as pessoas não sentem a necessidade de se ajustar a novas realidades do mercado, retardando com isso as mudanças nas suas profissões e padrões de trabalho que são necessários para os ajustes econômicos dinâmicos. Nem mesmo temos que invocar o fracasso das economias comunistas. Basta contemplar a falta de dinamismo na Europa com o seu intumescido estado do bem-estar social e compará-lo com a vitalidade dos Estados Unidos.

O QUE ELES [NEOLIBERAIS] NÃO DIZEM

Um estado do bem-estar social bem planejado pode na realidade encorajar as pessoas a correr riscos com o seu emprego e ser mais, e não menos, abertas às mudanças. Essa é uma das razões pelas quais existe na Europa uma demanda menor de proteção comercial do que nos Estados Unidos. Os europeus sabem que, mesmo que as indústrias fechem devido à concorrência estrangeira, eles serão capazes de proteger o seu padrão de vida (por meio dos benefícios do auxílio-desemprego) e receber um treinamento para outra função (com subsídios do governo), ao passo que os americanos sabem que a perda do emprego pode significar uma enorme queda no seu padrão de vida, podendo até mesmo representar o fim de sua vida produtiva. É por esse motivo que os países europeus com os maiores estados do bem-estar social, como a Suécia, a Noruega e a Finlândia, conseguiram crescer mais rápido do que os Estados Unidos (ou com a mesma rapidez), até mesmo durante a “ Renascença Americana” pós-1990

A mais antiga profissão do mundo?

Representantes de diferentes profissões em um país cristão estavam debatendo qual era a mais antiga das profissões.

O médico disse: “Pensem bem. Qual foi a primeira coisa que Deus fez com os seres humanos? Uma cirurgia. Ele criou Eva como a costela de Adão. A medicina é a profissão mais antiga. ”

“ Não, isso não é verdade”, retrucou o arquiteto. “ A primeira coisa que ele fez foi construir o mundo a partir do caos. É isso que os arquitetos fazem, eles criam a ordem a partir do caos. A nossa profissão é a mais antiga.

O político, que estava ouvindo com paciência, deu um sorriso maroto e perguntou: E quem criou o caos? ”

A medicina pode ou não ser a profissão mais antiga do mundo, mas é uma das mais populares em todo o planeta. No entanto, em nenhum país ela é mais popular do que no meu país de origem, a Coreia do Sul.

Um levantamento realizado em 2003 revelou que quase quatro em cinco dos “candidatos à universidade com pontuação mais elevada” (definidos com aqueles que estão dentro dos 2% superiores da distribuição) na área de ciências exatas queriam estudar medicina. Segundo informações extraoficiais, durante os últimos anos, ficou mais difícil ingressar até mesmo no menos competitivo dos 27 departamentos médicos do país (no nível da graduação) do que melhores departamentos de engenharia do país. É impossível ser mais popular do que isso.

O interessante é que, embora a medicina sempre tenha sido uma disciplina popular na Coreia, essa enorme popularidade é recente. Trata-se basicamente de um fenômeno do século XXI. O que mudou?

Uma possibilidade óbvia é que, seja por que motivo for (p.ex., uma população que está envelhecendo), os ganhos relativos dos médicos aumentaram, e os jovens estão meramente reagindo às mudanças nos incentivos - o mercado deseja médicos mais capazes, de modo que um número mais elevado de pessoas competentes está ingressando na profissão. Entretanto, a renda relativa dos médicos na Coreia vem caindo, devido ao contínuo aumento da oferta. E não se trata de o governo ter introduzido alguma regulamentação que tenha tornado difícil para as pessoas obter empregos como engenheiros ou cientistas (as óbvias escolhas alternativas para os que querem ser médicos). Então, o que está realmente acontecendo?

O que está motivando tudo isso é a queda radical da segurança no emprego ao longo mais ou menos dos últimos dez anos. Depois da crise financeira de 1997 que acabou com os “anos milagrosos” do país, a Coreia abandonou o seu sistema econômico paternalista e intervencionista e adotou o liberalismo de mercado que enfatiza a máxima concorrência. A segurança no emprego foi drasticamente reduzida em nome de uma maior flexibilidade do mercado de trabalho. Milhões de trabalhadores foram obrigados a aceitar empregos temporários. Ironicamente, mesmo antes da crise, o país tinha um dos mercados de trabalho mais flexíveis do mundo rico, com um dos coeficientes mais elevados de trabalhadores sem um contrato permanente de mais ou menos 50 %. A recente liberalização fez com que esse coeficiente aumentasse ainda mais e atingisse aproximadamente 60%. Além disso, até mesmo aqueles que têm contratos permanentes hoje sofrem com o aumento da insegurança no emprego. Antes da crise de 1997, a maioria dos trabalhadores com um contrato permanente podia esperar, de facto ou até mesmo de jure, ter um emprego para a vida inteira (como muitos dos seus equivalentes japoneses ainda têm). Mas isso acabou. Agora, os trabalhadores mais velhos que estão na casa dos 40 e 50 anos, mesmo que tenham um contrato permanente, são incentivados a abrir caminho para a geração mais jovem na primeira oportunidade possível. As empresas não podem demiti-los a seu bel-prazer, mas todos sabemos que existem maneiras de fazer com que as pessoas saibam que são indesejadas, o que as obriga a ir embora “voluntariamente”.

Considerando-se isso, os jovens coreanos estão, compreensivelmente, evitando os ricos. Eles supõem que se se tornarem cientistas ou engenheiros, a probabilidade de que fiquem sem empregos por volta dos 40 anos é elevada, mesmo que ingressem em grandes companhias como a Samsung ou a Hyundai. Essa é uma perspectiva horrível, já que o estado do bem-estar social na Coreia é extremamente fraco; na verdade, o menor entre os países ricos (medido pelos gastos sociais públicos como uma parcela do PIB).1 O estado do bem-estar social fraco não representava um grande problema anteriormente porque muitas pessoas tinham um emprego vitalício. Com o desaparecimento do emprego vitalício, ele se tornou letal. Se você perde o emprego, o seu padrão de vida cai catastroficamente e, o que é mais importante, você não tem realmente uma segunda chance. Portanto, os jovens coreanos inteligentes raciocinam que com uma licença para exercer a medicina eles poderão trabalhar até decidir se aposentar, que também é o conselho que recebem dos pais. Se o pior acontecer, eles podem montar a sua própria clínica, mesmo que não ganhem tanto dinheiro (bem, para um médico). É compreensível que todos os jovens coreanos inteligentes queiram estudar medicina (ou direito, outra profissão com uma licença, se estiverem na área de ciências humanas).

Não me entendam mal. Eu venero os médicos. Devo minha vida a eles; submeti-me a algumas cirurgias que salvaram a minha vida e fiquei curado de um sem-número de infecções graças aos antibióticos que eles me receitaram. Mas mesmo assim, sei que é impossível que 80% dos jovens mais inteligentes da Coreia na área de ciência exatas estejam talhados para ser médicos.

Assim, um dos mercados de trabalho mais livres do mundo rico, ou seja, o mercado de trabalho coreano, está deixando acentuadamente de distribuir os seus talentos da maneira mais eficiente. O motivo? O aumento da insegurança no emprego.

O estado do bem-estar social é a lei de falência para os trabalhadores

A segurança no emprego é uma questão complicada. Os economistas que defendem o livre mercado acreditam que qualquer regulamentação do mercado de trabalho que dificulte as demissões torna a economia menos eficiente e dinâmica. Para começar, ela enfraquece o incentivo para que as pessoas trabalhem arduamente. Além disso, desestimula a criação da riqueza por tornar os empregadores mais relutantes em fazer novas contratações (com medo de não poder demitir futuramente os funcionários, caso necessário).

As regulamentações do mercado de trabalho já são bastante ruins, argumentam eles, mas o estado do bem-estar social tornou as coisas ainda piores. Ao fornecer benefícios aos desempregados, seguro-saúde, instrução gratuita e até mesmo um auxílio desemprego, o estado do bem-estar social efetivamente concedeu a todos a garantia de ser contratado pelo governo - como um “trabalhador desempregado”, se você preferir chamar assim - com um salário mínimo. Por conseguinte, os trabalhadores não têm um incentivo suficiente para trabalhar arduamente. Para piorar ainda mais as coisas, esses estados do bem-estar social são financiados por meio de impostos pagos pelos ricos, reduzindo assim os incentivos para que estes últimos trabalhem bastante, criem empregos e gerem riqueza.

Considerando-se tudo isso, prossegue o raciocínio, um país com um estado do bem-estar social mais forte será menos dinâmico; os seus trabalhadores serão menos compelidos a trabalhar, enquanto os seus empresários serão menos motivados a criar riqueza.

Esse argumento tem sido muito influente. Nos anos 1970, uma explicação popular para o medíocre desempenho econômico da Grã-Bretanha na época era que o seu estado do bem-estar social de tornara inchado e os seus sindicatos excessivamente poderosos (o que também se deve, em parte, ao estado do bem-estar social, à medida que este último abafa a ameaça do desemprego).  Nessa interpretação da histórica britânica, Margaret Thatcher salvou a Grã-Bretanha colocando os sindicatos no seu devido lugar e reduzindo o estado do bem-estar social, embora o que efetivamente aconteceu seja mais complicado. A partir dos anos 1990, essa visão do estado do bem-estar social ficou ainda mais popular com o desempenho de crescimento (supostamente) superior dos Estados Unidos com relação ao de outros países ricos com estados do bem-estar social mais fortes.2 Quando os governos de outros países tentam reduzir os seus gastos com o bem-estar social, eles frequentemente citam a cura da chamada “Doença Britânica” praticada pela Sra. Thatcher ou o dinamismo superior da economia americana.

Mas é realmente verdade que uma maior segurança no emprego e um estado do bem-estar social mais poderoso reduzem a produtividade e o dinamismo da economia?

Como no nosso exemplo coreano, a falta de segurança no emprego pode levar dos jovens a fazer escolhas conservadoras na sua carreira, preferindo empregos seguros da área da medicina e do direito. Essa pode ser uma escolha adequada para eles do ponto de vista individual, mas conduz a uma má distribuição de talentos, reduzindo, portanto, a eficiência e o dinamismo econômico.

O estado do bem-estar social mais fraco dos Estados Unidos tem sido uma das razões importantes pelas quais o protecionismo comercial é muito mais forte lá do que na Europa, apesar de uma maior aceitação da intervenção do governo nesta última. Na Europa (é claro que estou desconsiderando nos detalhes as diferenças nacionais), se o setor no qual você trabalha declina e você perde o emprego, sem dúvida você recebe um grande golpe, mas não é o fim do mundo. Você continua a ter o seguro-saúde e poderá morar nas casas de propriedade do governo (ou receber subsídios de moradia), enquanto recebe o salário-desemprego (até 80% da sua última remuneração), um novo treinamento subsidiado pelo governo e ainda conta com a ajuda do governo para procurar um novo emprego. Em contraposição, se você é um trabalhador americano, o melhor que você tem a fazer é se agarrar ao seu emprego atual, se necessário por meio do protecionismo, porque perder o emprego significa perder quase tudo. A cobertura do seguro significa perder quase tudo. A cobertura do seguro-desemprego é irregular e dura menos do que na Europa. O governo oferece pouco ajuda para o retreinamento e a procura de emprego. O mais assustador é que perder o emprego significa perder o seguro-saúde e provavelmente a sua casa, pois existem poucas casas do governo ou subsídios públicos para o seu aluguel. Em decorrência disso, a resistência dos trabalhadores a qualquer reestruturação industrial que envolva a redução de emprego é muito maior nos Estados Unidos do que na Europa. A maioria dos trabalhadores americanos é incapaz de montar uma resistência organizada, mas aqueles que são - os trabalhadores sindicalizados - compreensivelmente farão todo o possível para preservar a atual distribuição de emprego.

Como demonstraram os exemplos anteriores, uma insegurança maior pode fazer com que as pessoas trabalhem mais, mas ao mesmo tempo faz com que elas trabalhem mais nos empregos errados. Todos aqueles jovens coreanos que poderiam ser brilhantes cientistas e engenheiros estão mourejando na anatomia humana. Muitos dos trabalhadores americanos que poderiam - depois de um retreinamento apropriado - estar trabalhando em indústrias emergentes (p.ex., a bioengenharia) estão sombriamente se agarrando aos seus empregos em indústrias que estão em declínio (p.ex., automobilística), apenas retardando o inevitável.

A essência de todos os exemplos anteriores é que, quando as pessoas sabem que terão uma segunda (ou terceira ou até mesmo quarta) chance, elas se mostram muito mais abertas a correr riscos quando se trata da escolha do primeiro emprego (como no exemplo coreano) ou em largar os empregos atuais (como na comparação entre os Estados Unidos e a Europa).

Você acha essa lógica estranha? Pois não deveria. Porque essa é exatamente a lógica por trás da lei de falência, a qual a maioria das pessoas aceita como “óbvia”.

Antes de meados do século XIX, nenhum país tinha uma lei de falência no sentido moderno. O que na época era chamado de lei de falência não conferia aos empresários falidos muita proteção contra os credores enquanto reestruturavam o seu negócio - nos Estados Unidos, o “Capítulo II” hoje oferece essa proteção durante seis meses. O mais importante é que a lei na ocasião não lhes dava uma segunda chance, pois lhes era exigido que pagassem todas as dívidas, por mais tempo que isso levasse, a não ser que os credores os “ dispensassem” da obrigação. Isso significa que, mesmo que o empresário falido conseguisse de alguma maneira começar um novo negócio, ele tinha que usar todo o seu novo lucro para pagar as antigas dívidas, o que tolhia o crescimento do novo negócio. Tudo isso tornava extremamente arriscado começar um empreendimento comercial.

Com o tempo, as pessoas se deram conta de que a falta da segunda chance estava desencorajando enormemente os empresários de correr riscos. Começando com a Grã-Bretanha em 1849, os países passaram a introduzir modernas leis de falência com proteção do tribunal contra os credores durante a reestruturação inicial e, o que é extremamente importante, conferindo aos tribunais o poder de impor reduções permanentes às dívidas, até mesmo contrariando a vontade dos credores. Ao ser combinada com instituições como a responsabilidade limitada, que foi introduzida mais ou menos na mesma época (ver pp.34-48), essa nova lei de falência reduziu o risco de qualquer empreendimento comercial, incentivando, portanto, as pessoas a correr riscos, o que tornou possível, o capitalismo moderno.

Na medida em que oferece uma segunda oportunidade aos trabalhadores, podemos dizer que o estado do bem-estar social é leis de falência incentivam os empresários a correr riscos, o estado do bem-estar social incentiva os trabalhadores a ser mais abertos à mudança (e aos riscos resultantes) nas suas atitudes. Por saber que haverá uma segunda oportunidade, as pessoas podem ser mais audaciosas na escolha da sua carreira inicial e mais abertas à ideia de mudar de profissão mais tarde da vida.

Os países com governos mais poderosos podem crescer mais rápido

E as evidências? Qual é o desempenho relativo de países que diferem quanto ao tamanho dos seus estados do bem-estar social? Como mencionei anteriormente, a sabedoria convencional diz que os países com estados do bem-estar social mais fracos são mais dinâmicos. No entanto, as evidências são respaldam esse ponto de vista.

Até a década de 1980, os Estados Unidos cresceram muito mais devagar do que a Europa, apesar do fato de ter um estado do bem-estar social muito mais fraco. Em 1980, por exemplo, os gastos sociais públicos como uma parcela do PIB foram de apenas 13,3% nos Estados Unidos em comparação com 19,9% para quinze países da União Europeia. Esse percentual chegou a 28,6% na Suécia, 24,1% na Holanda e 23% na Alemanha (Ocidental). Apesar disso, entre 1950 e 1987, os Estados Unidos cresceram mais lentamente do que qualquer país europeu. A renda per capita cresceu 3,8% na Alemanha, 2,7% na Suécia, 2,5% na Holanda e 1,9% nos Estados Unidos durante esse período. Obviamente, o tamanho do estado do bem-estar social é apenas um dos fatores que determinam o desempenho econômico de um país, mas isso mostra que um estado do bem-estar social forte não é incompatível com o crescimento elevado.

Mesmo depois de 1990, quando o desempenho de crescimento relativo do Estados Unidos melhorou, alguns países com estados do bem-estar social fortes cresceram mais rápido. Por exemplo, entre 1990 e 2008, a renda per capita dos Estados Unidos aumentou 1,8%. Esse percentual é basicamente o mesmo do período anterior, mas tendo em vista o arrefecimento das economias europeias, isso tornou os Estados Unidos uma das economias de crescimento mais rápido do grupo “principal” da OCDE (isto é, excluindo os países ainda não totalmente ricos, como a Coreia e a Turquia).

O interessante, contudo, é que as duas economias com crescimento mais rápido no grupo principal da OCDE durante o período pós-1990 são à Finlândia (2,6%) e a Noruega (2,5%), ambas com um estado do bem-estar social forte. Em 2003, a parcela dos gastos sociais públicos no PIB foi de 22,5% na Finlândia e 25,1% na Noruega, comparados com a média de 20,7% da OCDE e 16,2% nos Estados Unidos. A Suécia, que tem literalmente o maior estado do bem-estar social do mundo (31,3%, ou seja, duas vezes maior que o dos Estados Unidos), registrou uma taxa de crescimento de 1,8% que estava apenas levemente abaixo da taxa americana. Se contarmos apenas a década de 2000 (2000-2008) as taxas de crescimento da Suécia (2,4%) e da Finlândia (2,8%) foram bem superiores à dos estados Unidos (1,8%). Se os economistas que defendem o livre mercado estivessem certos a respeito dos efeitos prejudiciais do estado do bem-estar social sobre a ética do trabalho e os incentivos para a criação da riqueza, esse tipo de coisa não deveria acontecer.

É claro que ao dizer tudo isso não estou apregoando que o estado do bem-estar social é necessariamente bom. À semelhança de todas as outras instituições, ele tem aspectos positivos e negativos. Especialmente se ele for baseado em programas direcionados (como nos Estados Unidos), em vez de universais, ele pode estigmatizar os beneficiários da assistência social. O estado do bem-estar social eleva os “rendimentos de reserva” das pessoas e evita que elas aceitem empregos mal remunerados com condições de trabalhos precárias, embora afirmar que isso seja uma coisa ruim é uma questão de opinião (pessoalmente, acho que a existência de um grande número de “pessoas pobres empregadas’’, como acontece nos Estados Unidos, é um problema tão grande quanto o das taxas de desemprego de um modo geral mais elevadas que vemos na Europa). No entanto, se o estado do bem-estar social for bem planejado, com a visão de conceder aos trabalhadores uma segunda oportunidade, como é o caso dos países escandinavos, ele pode estimular o crescimento econômico fazendo com que as pessoas fiquem mais abertas às mudanças e tornando assim mais fácil a reestruturação industrial.
Só podemos acelerar o nosso carro porque ele tem freios. Se os carros não tivesses freios, nem mesmo os motoristas mais habilidosos ousariam dirigir a mais de 30 a 50 quilômetros por hora por temer os acidentes fatais. Analogamente, as pessoas conseguem aceitar com mais boa vontade o risco do desemprego e a necessidade de uma readaptação ocasional das suas habilidades quando sabem que essas experiências não irão destruir a sua vida. É por esse motivo que um governo mais poderoso pode fazer com que as pessoas fiquem mais abertas à mudança, tornando assim a economia mais dinâmica”.


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Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS e atual Diretor Técnico da Agência São Paulo de Desenvolvimento. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre jan.2009 e jul. 2015. Foi Superintendente do Instituto de Previdência do Município de São Bernardo do Campo- SBCPrev entre ago.2015 e fev.2016.

Artigo publicado no site do ABCDMaior, em 17/10/2016, coluna blogs.


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