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segunda-feira, 4 de julho de 2016

A ECONOMIA SOLIDÁRIA E O PAPEL DO PODER PÚBLICO

Jefferson José da Conceição

A economia solidária está, hoje, inserida na “outra metade” do sistema econômico. A primeira metade é aquela composta por empresas e trabalhadores que fazem parte da dinâmica e das relações capitalistas tradicionais, isto é, submetidos à compra e venda da força de trabalho e ao circuito que envolve produção, comercialização, distribuição e consumo típico de uma economia capitalista. A segunda metade é representada por um conjunto de empreendimentos que estão excluídos desta dinâmica. Neste caso, o modelo mais avançado é o da economia solidária.

1. O Papel do Poder Público Municipal em relação às “duas metades” da economia

Em ambas as partes (“metades”) da economia, os instrumentos ao alcance do Poder Público Municipal são limitados. Não está sob o domínio de uma Secretaria Municipal de Desenvolvimento (...), por exemplo, a definição da taxa de juros, taxa de câmbio, impostos (como IPI, ICMS, Imposto de Importação), taxas públicas, salário mínimo, legislação trabalhista. E não há muita margem para políticas de incentivo tributário, tendo em vista a necessidade de gastos em serviços públicos vitais à população. Isto não significa que não há o que fazer.

No caso das empresas inseridas no circuito capitalista clássico acima mencionado, cabe à gestão pública exercer o papel de articuladora visando formar redes de cooperação envolvendo poder público, setor privado, instituições de ensino e pesquisa, agências de crédito e sindicatos de trabalhadores. Cumpre também à gestão pública fazer emergir sinergias que a atuação privada isolada não permite, em áreas como novos mercados, qualificação de mão de obra, aproximação da oferta e da demanda em itens estratégicos, como os serviços tecnológicos, inovações produtivas e de gestão, compras coletivas; parcerias nacionais e internacionais. O gestor público pode, sem custo praticamente algum, fazer surgir uma “governança” público-privada e um “capital social” de grande valia.

É este capital social que, a partir dos próprios recursos privados, incrementará a competitividade produtiva local. Fóruns de Desenvolvimento Econômico e Arranjos Produtivos Locais (APLs) são exemplos típicos destas redes de cooperação. Esses espaços multipartites, portanto, dialogam com esta estratégia, na medida em que juntam os atores e instituições em torno da busca de resultados comuns e concretos, a partir de uma agenda geral, local e setorial, calcada em diagnósticos e metas. (...)

No caso da economia solidária, a gestão pública deve buscar agir também de modo a induzir processos virtuosos de crescimento. Antes de aprofundar estes processos, cabe uma breve contextualização da economia solidária, para que melhor se discuta seus avanços, possibilidades e desafios.

2. Um pouco da história da economia solidária

A economia solidária vem de longa data. Suas origens remontam a meados do século XIX, quando algumas experiências europeias buscaram constituir uma economia não capitalista, baseada no cooperativismo de produção e de consumo, vinculado a um socialismo denominado de utópico.

De fato, estas experiências foram concebidas e realizadas como uma das respostas do movimento operário europeu ao sistema econômico de exploração capitalista. Desde então, entre os princípios da economia solidária estão a cooperação, a união e a solidariedade entre homens e mulheres, para não somente garantir o sustento de suas famílias, mas também evidenciar, no contexto da luta ideológica e política, que existem outros meios possíveis de eficientemente organizar a produção e a distribuição da riqueza, distintas do individualismo e da valorização do privado, propugnados pela ideologia liberal capitalista.

Nesta longa trajetória de aprendizado da economia solidária desde então, há casos de empreendimentos solidários bem sucedidos. Na Europa, dois casos de economias solidárias exitosas, por exemplo, são: o da Região de Emilia Romagna, na III Itália, onde a participação das cooperativas e das pequenas empresas situa-se em torno de 30% do PIB da região; e o do grupo espanhol Modragon Corporacion Cooperativa, grupo que está entre os maiores da Espanha na atualidade.

Muitos fatores particulares explicam o sucesso de ambas, mas um deles parece comum: o da busca de “integração” destes empreendimentos solidários nos mercados capitalistas, sem que isto ferisse os princípios basilares que sustentam a economia solidária. De outro lado, tirante também as especificidades de cada caso, há muitas experiências que pecaram por não se prepararem adequadamente para sua participação nos mercados capitalistas.

Assim, apesar da longa trajetória percorrida, ainda permanece um grande desafio para a economia solidária: como cultivar os princípios da economia solidária (inclusão, cooperação, democracia, igualdade e geração de renda) em um contexto em que predomina o modo de organização social e de produção capitalista? Como concorrer com as empresas capitalistas em termos de preços, qualidade e prazos?

3. A economia solidária no Brasil

No Brasil, a economia solidária – que tem origens ligadas às cooperativas agrícolas – foi retomada com força a partir da década de 1990, quando se verificou grande número de empresas falidas e de pessoas desempregadas. Na Região do ABC, o sindicalismo apresentou o cooperativismo de produção como forma de manutenção da fábrica (seu maquinário e postos de trabalho). Isto ampliou a abrangência da economia solidária local, que vai dos microempreendimentos de inclusão de segmentos mais vulneráveis até grandes fábricas geridas pelos cooperativados.

A Região do ABC vivenciou uma importante experiência que foi a dos metalúrgicos do ABC – uma das categorias mais atingidas na crise da década de 1990. Na época, o sindicato era presidido pelo hoje prefeito Luiz Marinho. Em 1997, a empresa Conforja, situada em Diadema, teve sua falência decretada. A razão desta falência residia fundamentalmente na queda dos investimentos públicos da Petrobrás no período. 

A Conforja, no seu auge nos anos de 1970, chegou a ser a maior forjaria da América Latina. Fornecedora da Petrobrás, a empresa empregava cerca de 1200 funcionários. Após muitas discussões, os funcionários da empresa decidiram, com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, arrendar a empresa e constituir a Uniforja – um conjunto de quatro cooperativas de produção. 

Hoje, a Uniforja expande seus investimentos e é uma das empresas que fazem parte do seleto grupo de fornecedoras da Petrobrás. A vontade dos trabalhadores e das trabalhadoras, com o apoio firme do Sindicato, possibilitou que, além da recuperação da fábrica, pudesse a Uniforja constituir-se em uma empresa de sucesso, com faturamento de mais de R$ 220 milhões por ano e geração de mais de 600 postos de trabalho.

A partir da experiência exitosa da Uniforja e de outras, a economia solidária voltou a ter um olhar especial, sobretudo nas políticas de geração de emprego e renda, executadas pelos governos, sindicatos, universidades, igrejas, ONGs e outros membros da sociedade civil. A economia solidária se fortaleceu no governo Lula com a constituição, em 2003, da Secretaria Nacional de Economia Solidária, e continuou a se expandir na gestão Dilma.

Entretanto, após o ilegítimo impeachment da Presidenta Dilma (ilegítimo, pois não foi demonstrada culpa de responsabilidade da Presidenta), teme-se um forte retrocesso das políticas de apoio à economia solidária.  Este temor é ainda maior na medida em que ainda há muito a se avançar em itens como financiamento, comercialização, capacitação gerencial, formação de redes e parcerias.

4. A economia solidária e a política municipal de desenvolvimento: a experiência de São Bernardo do Campo entre 2009 e meados de 2015

 Até há pouco era baixo o número de governos municipais e estaduais que efetivamente tinham uma política de apoio à economia solidária.  Estas políticas somente começaram a crescer em número, abrangência e valores envolvidos a partir dos anos de 1980/1990, a partir de cidades como Porto Alegre, Belém, Santo André e Recife. Desde então, tem crescido estas experiências. No Estado de São Paulo, destaques para os casos de Osasco, Diadema, São Bernardo do Campo, e, mais recentemente, a cidade de São Paulo (especialmente a partir de 2014, na Gestão do Secretário de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, Artur Henrique da Silva Santos). Registre-se que o Governo do Estado possui uma política de economia solidária muito diminuta, limitando-se a apoiar, por meio da Sutaco (ligada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Governo do Estado de São Paulo) alguns grupos de artesanato.

Neste artigo, vou me ater à política desenvolvida pela Prefeitura de São Bernardo, ainda quando exercíamos a coordenação da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Empreendedorismo, isto é, entre 2009 e meados de 2015.

A política pública da Prefeitura de São Bernardo do Campo no campo da Economia Solidária, realizada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Empreendedorismo, por nós coordenada entre 2009 e julho de 2015, alicerçou-se através de parcerias com instituições como Unisol, Agencia de Desenvolvimento Solidário (ADS-CUT), Centro de Formação Padre Léo Comissari, Sebrae, Consulado da Mulher, Captazia dos pescadores, Centro de Referência em Assistência Social (Cras), Centros de Atenção Psicossocial (Caps), Forum Municipal, Regional e Nacional de Economia Solidária, Rede de Gestores em Política Pública de Economia Solidária, GT Trabalho e Renda do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, Dieese, Fundação Volkswagen, entre outras.

Uma série de ações integradas constituiu a política para a economia solidária no município, no período:
a)       Constituição de um Centro Público de Economia Solidária em São Bernardo do Campo. Um embrião desse Centro Público foi o denominado “Espaço Solidário”, que foi inaugurado em agosto de 2011. A intenção com este Espaço Solidário - anexo à Central de Trabalho e Renda, que, por sua vez, foi constituída em 2010, - é que ele se consolide como referencia da economia solidária no município, possibilitando maior integração e organização dos empreendimentos e suas atividades. Foram realizadas no Espaço Solidário atividades de formação e assessoria para os grupos já formados, assim como orientações para pessoas que pretendem organizar, coletivamente, um empreendimento para produzir bens ou prestar serviços. O Espaço Solidário contribuiu, no período, para a exposição e comercialização dos produtos e serviços dos empreendimentos solidários, tais como artesanato, costura e reciclagem. Digno de registro foi a experiência da lanchonete conduzida exclusivamente pelos usuários do Centro de Atenção Psicossocial, que produzem e comercializam doces e salgados, propiciando atividades que, para além de terapêuticas, possibilitaram a reinserção dos usuários no cotidiano de trabalho e no trato com o público consumidor;
b)      Priorização dos empreendimentos da economia solidária nas compras públicas;
c)       Criação de espaços para os empreendimentos nos bairros em processo de urbanização, como é o caso dos conjuntos habitacionais construídos pela Prefeitura;
d)      Fomento à criação de cadeias produtivas regionais vinculadas à economia solidária;
e)      Apoio à economia solidária por meio da Lei Municipal de Apoio à Economia Solidária.
5. A inédita experiência da SBCSol

Deixei para o final deste artigo uma das ações mais importantes no campo da economia solidária no período em que a Secretaria esteve sob a nossa coordenação: a inédita incubadora de Empreendimentos Solidários de São Bernardo do Campo (SBCSol), parceria entre o Instituto Granbery/Universidade Metodista, a Prefeitura Municipal e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Lançada em 2012, a SBCSol teve o desafio de criar uma metodologia específica de incubação para os empreendimentos solidários, bem como apoiá-los com capacitação diversas. Na prática, isto significava também tornar os empreendimentos solidários competitivos e capazes de concorrer no mercado capitalista. Isto envolvia ainda a participação da economia solidária em processos de licitação dos poderes públicos municipal, estadual e federal.

Apesar do seu curto período de existência, foi possível extrair elementos importantes da experiência da SBCSol. Uma delas foi a necessidade de que o processo de incubação enfatizasse a busca constante da qualidade dos produtos e serviços ofertados pelos empreendimentos, o que requereu, por sua vez, o aprimoramento persistente dos processos de produção e de prestação de serviços.

Outro elemento a destacar foi o da discussão dos rumos da formalização dos empreendimentos solidários, se na forma de cooperativa, associação, pequena empresa, entre outras. Certamente, norteou a discussão e escolha o caminho que possibilitasse dar melhores condições de remuneração aos seus sócios. Mas este foi apenas um dos pontos levados em conta.

Como resultado, a SBCSol realizou a incubação de 21 negócios, sendo 18 empreendimentos e 3 redes (Rede Alimentação, Rede Artesanato e Rede Reciclagem Têxtil);  4 seminários de desenvolvimento metodológico, divulgação e compartilhamento dos resultados do projeto; 10 cartilhas temáticas de formação e 10 oficinas gerenciais de capacitação; montagem de  biblioteca com 1,2 mil títulos ;  site, blog e perfil da SBCSol; 2 Livros editados e publicados e 1 vídeo institucional; 9 artigos e 2 Teses de Doutorado; inserção dos Estudos da Economia Solidária na grade curricular na disciplina de Gestão do Terceiro setor.

No total, 180 pessoas diretas (e 460 pessoas indiretamente) foram beneficiadas pelo projeto. Mais de 40 professores, pesquisadores e alunos estiveram envolvidos no projeto.
Boa parte da experiência da SBCSol está contada em dois livros. O primeiro deles é “A Política Pública e o papel da universidade: reflexões da Incubadora de empreendimentos solidários de São Bernardo do Campo- SBCSol”, organizado por Douglas Murilo Siqueira e Fabiana Cabrera Silva e lançado ela editora da Universidade Metodista em 2014. Neste livro, consta artigo deste que vos escreve.

O segundo livro é “Metodologia de Incubação: Experiências de Economia Solidária em São Bernardo do Campo”, organizado por Daniela Sampaio Kavasaki Gomes, Renata Mendes e Cristina Paixão Lopes. 

Lançado em 2015, a publicação, por meio de diversas ilustrações, relata as experiências com os grupos incubados a partir da metodologia aplicada, enfatizando desde princípios da autogestão até processos de sua formalização e estruturação.  Entre os autores de artigos no livro, estão alguns dos gestores que estiveram diretamente envolvidos como projeto, como Nilson Tadashi Oda, Vanderléa Lima Sena Pereira e Elizabete de Jesus Rocha. O livro pode ser baixado em http://portal.metodista.br/noticias/2015/maio/editora-metodista-disponibiliza-livros-gratis

Por fim, cabe ter claro que a SBCSol, em si mesma, foi uma inovação no Brasil, pois conciliou a política pública de fomento à economia solidária com o potencial de aprendizagem que a Universidade oferece. Este modelo pode agora ser replicado em outras localidades. Evidentemente, ao ser replicado, é fundamental potencializar seus pontos fortes e eliminar ou reduzir seus problemas.

Informo que esse artigo é uma versão ajustada e atualizada do meu artigo publicado no referido livro sobre Economia Solidária publicado em 2014.

Jefferson José da Conceição é Prof. Dr. da USCS e Atual Diretor Técnico da Adesampa. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo de São Bernardo do Campo entre janeiro de 2009 e julho de 2015. Foi Diretor-Superintendente do SBCPrev entre ago.2015 e fev.2016

Obs.: Artigo publicado em 4/7/2016 em meu blog semanal no site do jornal ABCDMaior.

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