Neste 1º de maio, Dia do Trabalho, reproduzimos a seguir a entrevista que eu e a pesquisadora Gisele Yamauchi fizemos com o Presidente do Instituto Trabalho, Desenvolvimento e Indústria - TID Brasil, Rafael Marques, e que foi por nós publicada, na forma de nota técnica, na 7ª Carta de Conjuntura da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul). A entrevista trata dos desafios do futuro da indústria brasileira, dos impactos da decisão do fechamento das operações industriais da Ford no Grande ABC e das negociações pela manutenção da atividade industrial na planta. Vale a pena ler a entrevista dada a qualidade e a profundidade das respostas. Confira
Nota técnica
OS DESAFIOS DO FUTURO
DA INDÚSTRIA BRASILEIRA E AS NEGOCIAÇÕES PELA MANUTENÇÃO DA ATIVIDADE
INDUSTRIAL NA FÁBRICA DA FORD EM SBC NA VISÃO DE UM DOS SEUS NEGOCIADORES –
ENTREVISTA COM O PRESIDENTE DO INSTITUTO TID-BRASIL, RAFAEL MARQUES
Jefferson José da
Conceição
Gisele Yamauchi
Rafael Marques, o nosso entrevistado, é
uma das lideranças que está à frente das negociações para a continuidade da
atividade industrial da planta da Ford em São Bernardo do Campo, após o
bombástico anúncio pela empresa, em fevereiro de 2019, de encerrar suas
operações no Grande ABC. Como se verá nesta entrevista, esta decisão tem enorme
impacto na economia do Grande ABC, do Estado de São Paulo e do País. Rafael
esteve na sede da Ford, em Dearborn, EUA, juntamente com outras lideranças
sindicais, no início de março deste ano, para dialogar com a empresa, buscar
reverter a decisão do fechamento ou encontrar soluções alternativas. Isto, por
si só, já justificaria a entrevista, que realizamos em 25/3/2019. Rafael
Marques tem forte inserção regional. Foi também Presidente da Agência de
Desenvolvimento Econômico do Grande ABC nos anos de 2013 e 2014.
Mas nosso entrevistado representa mais
do que o líder sindical da Ford que busca defender os empregos na planta fabril
e na região do ABC. Ele é uma espécie de figura ponte entre o passado e o
futuro da indústria brasileira. Não seria exagerado dizer que lideranças como
ele - no empresariado, no meio acadêmico e nas gestões públicas-, se inseridas
em conjunto em projetos de envergadura nacional e internacional, podem
representar o caminho para a reconstrução da indústria do país em novas bases,
mais integrada internacionalmente, atualizada em termos tecnológicos, competitiva
e avançada nas relações entre os vários elos que compõem a cadeia produtiva.
Rafael Marques, hoje com 54 anos,
carrega uma trajetória fortemente inserida na tradicional e simbólica indústria
do Grande ABC. É trabalhador da indústria automobilística. Tornou-se uma das
lideranças sindicais da região com larga representatividade e atuação nacional.
É metalúrgico na Ford desde 1986, onde ingressou como eletricista de
manutenção. Antes, já havia trabalhado em empresas como Villares e GROB. Foi
representante da CIPA (1991), Coordenador da Comissão de Fábrica (1998-2005) e
do Comitê Sindical da Empresa (2008). No Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,
migrou por cargos de direção entre 2008 e 2011 até tornar-se presidente em
2012, cargo que ocupou até julho 2017.
A constituição do Instituto Trabalho, Indústria
e Desenvolvimento (TID-BRASIL) em outubro de 2017 representa um marco
importante nesta trajetória. A pauta do Instituto é o futuro da indústria no
Brasil. Isto remete necessariamente ao aprofundamento de temas como participação
do país nas cadeias de valor global, novas tecnologias, arranjos produtivos,
Indústria 4.0, novas formas de organização social. Como se verá nesta
entrevista, Rafael Marques, com brilhantismo, indica as pontes a serem
trilhadas para a conexão entre o passado e o futuro da Indústria.
Entrevistadores:
A Ford anunciou em fevereiro de 2019 a decisão de fechar a sua fábrica em São
Bernardo do Campo. Você e os representantes sindicais do ABC foram pegos de
surpresa com esta decisão?
Rafael Marques: Uma de nossas preocupações
era a produção de carros, os problemas com relação ao New Fiesta (carro
produzido pela Ford em São Bernardo) e à planta fabril. Estávamos voltados para
o problema da produção, especialmente de automóveis, já que o New Fiesta vem
perdendo o mercado de maneira muito forte. Nos últimos anos, o preço do carro
ficou muito elevado. É baixa a produção de peças deste veículo aqui no Brasil.
Isto acentuou a crise, dado o patamar em que chegou o câmbio no país. Os custos
do carro “explodiram”.
Entrevistadores: Você quer dizer que
este carro da Ford foi projetado para uma determinada taxa de câmbio, e a
elevação do câmbio acima das previsões potencializou os custos do carro.
Rafael Marques: Sim. Quando o carro New
Fiesta foi projetado, o câmbio era de 1,7 Reais por Dólar. Quando foi lançado,
o câmbio já era de 1,9. Depois, o câmbio bateu em 4,0. E, como eu disse, era
baixo o índice de conteúdo local de peças no Brasil, muito baixo. Podemos dizer
que não foi um investimento completo. Eles não desenvolveram fornecedores no
país. Preferiram desenvolver fornecedores globais. Esta era a ideia de Albert Caspers,
chairman da Ford Europa. O Alan Mullaly era o Presidente da Ford na época. A
Ford fez investimentos, mas estes estavam inseridos em uma estratégia global. A
gente sempre alertou que isso era um risco. Afinal, o Brasil tem as suas
peculiaridades. É difícil dimensionar a crise econômica, planejar em detalhes,
isto é, de modo preciso, um projeto.
Entrevistadores: Qualquer projeto
precisa de um horizonte de planejamento e de uma estabilidade das regras do
jogo.
Rafael Marques: Sim, é necessário um
horizonte. Então, o New Fiesta perdeu força, por conta de custo e preço.
Entrevistadores: E no caso dos
caminhões?
Rafael Marques: A produção de
caminhões deve continuar. Vão-se buscar os meios para isto, parcerias, mas a
produção de caminhão fica.
Entrevistadores: Qual é o caminhão
produzido atualmente aqui na fábrica de São Bernardo do Campo?
Rafael Marques: O F-Series e o cargo.
O F-series é inclusive um ícone da Ford. Em 2012, 2013, a empresa o tirou de
linha e depois retornou com ele, dois anos depois. Alertamos a empresa que este
era o único produto que nos conectava com os Estados Unidos. Eles iriam tirar
de linha, um absurdo. Tiraram, mas depois ele voltou. Entretanto, ele não voltou
com a mesma força de mercado que tinha antes de parar. Estávamos então concentrados
em automóveis, quando veio a informação do fechamento da fábrica de São
Bernardo do Campo. E que iria encerrar toda a atividade, inclusive a produção
de caminhões. Eu confesso que ficamos bastante frustrados, preocupados.
Chegamos a pensar, se a gente não tinha sido um pouco ingênuo, ou se faltou
alguma leitura correta da conjuntura.
Entrevistadores: E a que conclusão vocês
chegaram?
Rafael Marques: Conversando com algumas
pessoas, por exemplo, o Marcos Oliveira, que presidiu a Ford de 2000 a 2007, e
hoje preside o Grupo Lochpe, constatamos que ele também ficou surpreso com a
decisão. Isto porque se trata de uma fábrica moderna, uma fábrica estruturada
em linha com o que se tem no setor, ligeiramente acima da média em termos de estrutura
fabril antiga, de muitos anos. Portanto, o fechamento da fábrica não era o
esperado. Uma de nossas preocupações era o novo caminhão, o euro 6, para 2023.
Tínhamos em caminhões o alicerce para puxar a negociação dos investimentos em
novos projetos de automóveis. Era essa a nossa intenção.
Entrevistadores: As informações são de
que, no caso do próprio New Fiesta, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e a Comissão
de Fábrica tiveram um papel importante na decisão da empresa em realizar os
investimentos.
Rafael Marques: De fato. É nesse
período, no qual eu estava na coordenação da Comissão de Fábrica, que iniciamos
essa discussão. Em verdade, eram dois projetos. Um deles era o automóvel Ka. Em
realidade, a segunda versão do Ka. Neste caso o processo envolveu um arranjo
local, com a autorização da engenharia da Ford global para que a engenharia da
subsidiária da Ford no Brasil pudesse fazer um carro híbrido. Buscou-se uma fusão
do projeto do Fiesta, uma segunda versão do Fiesta. Mas seria a primeira versão
feita pela engenharia brasileira; e a segunda, em relação ao mundo. Então, aquele
Ka é uma fusão dos dois carros, que deu uma dimensão maior. Esse carro durou um
tempo no mercado, uns cinco anos. Vendeu bem. Cumpriu o seu papel. Foi um carro
que deu escala, rentabilidade. E era baixo investimento. Com uma fusão de
plataformas, um arranjo local de engenharia, o carro ficou bonito. Por
conseguinte, isto resolveu um problema nosso naquele período. O segundo projeto
dessa pauta do sindicato foi o New Fiesta. Claro que houve um remanejamento no
período entre os modelos de São Bernardo e os de Camaçari, na Bahia. O Ka era
feito aqui e hoje é feito na Bahia. O Fiesta era feito aqui e foi o primeiro
carro da Bahia. Depois a Eco Sport. Então, houve essa mistura de plataformas entre
São Bernardo e Camaçari. Esta é justamente uma das críticas que o Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC tem feito, especialmente quando se olha para o regime
automotivo brasileiro. Esse remanejamento entre as plataformas, envolvendo as
duas plantas, deixou a planta de São Bernardo do Campo em condição de
desvantagem. Veja-se o caso do New Fiesta. Foi o lançamento do Ka, quase dois
anos depois que “canibalizou” parte do mercado. Então, junto ao governo, nós
estamos buscando também apontar para esta luta. Queremos mostrar para o governo
federal que São Bernardo foi prejudicado dentro do contexto do regime
automotivo e do regime do nordeste.
Entrevistadores: O que você diz é que
o Regime Automotivo do País tem que estimular o surgimento de novas áreas de
produção automotiva, mas apoiar também as áreas tradicionais, como o Grande ABC
Paulista. É isto?
Rafael Marques: Não tem sentido a fábrica
desfazer da parte de caminhões. A produção de caminhões é rentável. Em quase
todos os anos a operação fecha com rentabilidade. Isto somente não acontece nos
anos em que o mercado sofre crise, como no momento atual, em que a escala de
produção vai lá para baixo. Isto também está acontecendo com a Mercedes-Benz, Scania,
Volvo. Todo mundo está em crise. A indústria em geral. Não é só a Ford.
Conhecemos praticamente todas as montadoras. Elas sabem que em muitos anos elas
vão ganhar, mas, perderão em alguns outros anos.
Entrevistadores:
Que fatores foram decisivos, a seu ver, para a Ford ter tomado a decisão do
fechamento da fábrica em São Bernardo?
Rafael Marques: Em 2017, a Direção da
Ford soltou um posicionamento sobre as operações globais. Ali eles definiram
que não teriam mais negócios de caminhões. Entretanto, eles disseram que dariam
autonomia para as regiões [Direções Regionais] onde há fábricas que produzem
caminhões, como é o caso da América do Sul e da Europa, em particular a Turquia.
As regiões teriam autonomia para achar alternativa, mas a direção global não
colocaria mais recursos. Esse é um fator importante. Outro fator é a
instabilidade econômica no Brasil. Não há como negar o peso disto. A crise do
Brasil ocorre desde 2015. Trata-se de uma recessão forte. O mercado de trabalho
está depreciado. O País está muito instável. São grandes as disputas institucionais
de poder. Isto mexe com as operações industriais, que são muito sensíveis aos
elementos macroeconômicos. Uma indústria que produz e vende automóveis é muito
sensível. A Ford não diz, porque não quer politizar, mas certamente a crise
econômica e a crise política pesam. O projeto do New Fiesta tinha que ter gerado
rentabilidade, como qualquer projeto privado. Entretanto, a empresa otimizou muito
o custo dos investimentos. Eles definiram a estratégia com base em baixo
conteúdo local de produção. Então, é um carro que tinha uma curva dimensionada até
2023. O auge da curva, o topo, seria agora. A partir daí entraria em declínio.
Era esse o plano. O New Fiesta era para atingir a maior escala em 2018 e 2019.
Depois o declínio. A isto se seguiria um novo investimento. O carro teve um ano
e meio de produção e escala interessante e depois ele caiu em queda livre, não
fez dinheiro. Então a região não conseguiu manter capital, ficou dependente dos
aportes da Direção da Ford mundial. Isso nos prejudicou fortemente. Há também
uma crise na Ford. A empresa vive uma crise no mundo, com uma alteração grande
do seu comando. Em 2018, houve uma mexida importante na cúpula da empresa. Mark
Fields, Diretor Executivo da Ford Motors entre 2012 e 2014, tinha o
dimensionamento dessa nova onda da tecnologia, de novos produtos, da fábrica do
futuro. Mas ele queria fazer uma transição de longo prazo, que resultasse em
menos ruído e menos impacto para a marca e para os trabalhadores. Essa tese foi
derrotada pelo conselho e foi colocada uma pessoa nova com menos história na Ford.
Essa pessoa nova, portanto, chegaria com mais apetite de fazer as coisas como estão
acontecendo agora aqui no Brasil, na França, na Rússia, na Alemanha, entre outras
localidades.
Entrevistadores: Que outras fábricas estão
sendo fechadas?
Rafael Marques: Na verdade, os casos
de fechamento são os do Brasil, Rússia e França. Há também um enxugamento forte
na Alemanha e corte na área administrativa de até 27%. Este é o tamanho dos
cortes. É o que temos conhecimento até agora. Acho, porém, que vem mais cortes
por aí. Penso que eles abriram o primeiro front, mas que vão
continuar. Houve uma mudança grande em várias áreas na Ford Europa e Ford North
America: finanças, engenharia... Nesse momento, ocorrem novas mudanças. Minha
avaliação é que se trata de uma direção questionada no mercado financeiro. O fato
é que as ações da Ford estavam num patamar de US$ 18,00 variando em torno
disso. Com Mark Fields, entre US$ 12,00 e US$ 13,00. Com a Direção atual, US$
8,00, variando em torno disso. Acho que é uma direção pressionada pelo mercado por
resultados. Nesse contexto de “apetite” por resultados, eles colocaram na mira
a planta de caminhões. E o investimento não é tão grande para uma empresa como
a Ford. Mas infelizmente eles decidiram se livrar daquilo que não é mais
prioridade, embora a planta tenha sido quase sempre rentável e contribuído com
um quinhão na remessa que o Brasil regularmente envia para os Estados Unidos. Acho
que esses são os fatores mais importantes.
Entrevistadores: No início de março,
na sequência do processo de mobilizações e ações, você, o Presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Wagner Santana, e o Diretor Sindical da
Ford, José Quixabeira de Anchieta (o “Paraíba”), estiveram em Dearborn,
Michigan, EUA, para discutir com a alta Direção da Ford a decisão de fechamento
da fábrica de São Bernardo, visando buscar alternativas para a sua continuidade
e modernização. Como foi esta negociação?
Rafael Marques: Não foi propriamente uma
“negociação”. Nós solicitamos, sim, uma reunião ao modo de negociação. Fomos
com esse espírito. Mas, lá, encontramos um ambiente fechado com pouco espaço
para discussão e negociação. Eles nos receberam, prestaram contas. Fizeram
questão de isentar os trabalhadores - mensalistas, horistas, terceirizados, a
comunidade em geral – das razões que levaram à decisão de fechamento.
Entrevistadores: Quem os recebeu?
Rafael Marques: O presidente de
operações de manufatura. Ele tem um cargo abaixo do Jim Hackett, que é o
Diretor Executivo da Ford. Especula-se que deverá ser o próximo presidente. Mas,
como disse, foi uma reunião que serviu para eles isentarem os trabalhadores e
as relações sindicais das razões do fechamento. Eles afirmaram inclusive que as
relações sindicais são das melhores que a Ford tem no mundo. Admitiu erros,
isto é, erros de comando de quem acompanha o Brasil nos Estados Unidos e de
quem dirige as operações aqui. Há, de fato, vários erros que levaram à ruína da
estratégia da Ford no Brasil, especialmente aqui nesta planta de São Bernardo.
Ele não enumerou precisamente quais esses erros, mas disse que a Ford não tinha
alternativa. A decisão do fechamento foi comunicada ao mercado. Em tempos de hegemonia do mercado e de
financeirização da economia, quando você “diz algo para o mercado” – mercado
este que está acima da própria comunidade, de conselhos e das relações diversas
– está dito. A ânsia de remunerar o capital aberto é grande. É perceptível a pressão
que eles estão sofrendo. Admitiram vários erros, como já expus. E estão
cometendo mais um, ao decidirem fechar a fábrica de caminhões. A única abertura
que eles nos deram residiu na temática de que outra empresa adquira o parque
industrial da Ford em São Bernardo. Existem interessados. Eles nos disseram que
iríamos receber visitas de outras montadoras na planta de São Bernardo e que o presidente
da Ford na América do Sul, Lyle Waters, é o responsável pelas negociações.
Então, o tema de uma nova empresa para ser proprietária da planta é a
possibilidade que se tem e vamos torcer para que dê certo e que haja, por parte
da Ford mundial, a facilitação com o negócio.
Entrevistadores: Mas há algum termo de
compromisso com a manutenção do emprego dos trabalhadores?
Rafael Marques: Esta parte, que nos
diz respeito diretamente, envolve um diálogo com as empresas interessadas na
aquisição da fábrica. Três fatores podem gerar interesse das empresas que se
habilitem a adquirir a propriedade da planta: capital necessário, capacidade
técnica e interesse de se manter com a fábrica em São Bernardo. Garantidos
esses três fatores, assina-se um termo de confidencialidade. A partir daí a Ford
começa a abrir os dados da operação. Esses são os primeiros pressupostos. Então,
nós imaginamos que, diante desses pressupostos, o Sindicato vai ter que sentar à
mesa com a empresa interessada. Esta conversa não vai ser com a Ford. A Ford
não vai querer discutir. Claro, a Ford vai nos apresentar a nova empresa, mas ela,
Ford, não vai querer tomar assento nas conversações do Sindicato com a empresa
interessada. Se evoluírem mesmo as discussões para a venda da fábrica, veremos
como o diálogo do Sindicato e da nova empresa vai avançar também. Reafirmo que
há interessados, há duas cartas de confidencialidade já assinadas. Assim, o foco
da nossa luta é de discutir as condições do encerramento dessa história, do
processo da Ford naquela planta fabril; dialogar com a empresa interessada em
adquirir a planta, e, quem sabe, mais à frente, entrar na discussão com a
esfera pública.
Entrevistadores:
Se efetivado o fechamento da fábrica, 4,3 mil trabalhadores diretos e indiretos
na planta ficarão sem emprego. Estudo da Subseção Dieese do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC apontam que isto representa anualmente entre salários e
benefícios algo como R$ 600 milhões por ano. Estimativas do Observatório
Conjuscs, que considerou também a cadeia de fornecedores, calcula que o valor
do impacto com remunerações salariais e benefícios sobe para algo entre R$ 1,2
e R$ 1,4 bilhão por ano. Considerando-se o efeito multiplicador em cadeia,
pode-se chegar mesmo a algo como R$ 5 bilhões ao ano, que deixarão de circular
na economia. Por volta de 100 mil pessoas, entre trabalhadores e familiares,
serão afetadas diretamente. Portanto, será grande o impacto sobre a cidade de
São Bernardo, a Região do ABC, o Estado de São Paulo e o Brasil, em termos de
empregos, geração de renda e arrecadação. Neste sentido, como você vê o
envolvimento do poder público–Prefeitura, Consórcio Intermunicipal, Governo do
Estado e Governo Federal – neste processo de enfrentamento do problema e de busca
de soluções e alternativas?
Rafael Marques: Ao que parece, a Ford
projetou um cenário para o fechamento da fábrica de São Bernardo em que haveria
baixa reação das esferas de governo, a partir, sobretudo, do fato de que os atuais
governos têm uma visão mais liberal. A empresa deve ter tomado como pressuposto
que a reação seria baixa porque estes governos compartilham da visão de que o
setor privado tem todo o direito de tomar esta decisão, sem o envolvimento do
estado. Claro que, entre as três esferas de governo (União, Estado e
Município), a prefeitura é a que mais iria “espernear”. É ela que sentirá diretamente
a queda da arrecadação dos impostos. A maioria das pessoas do conjunto de
futuros desempregados, fruto do fechamento da fábrica, mora em São Bernardo. Ao
longo da sua história no Brasil, a Ford obteve condições especiais para
funcionamento, muito relevantes, que geram um grau de comprometimento da
empresa com o Brasil. Estas condições especiais estabelecem um compromisso da
Ford com o país. Achamos que nem mesmo as estatais tiveram condições tão
favoráveis como a Ford teve no Brasil. Os benefícios do regime automotivo para
o Norte e Nordeste, os benefícios do BNDES, as isenções do Programa InovarAuto,
os acordos das Câmaras Setoriais, os Acordos Emergenciais, o apoio em infraestrutura,
entre outros, soma altos valores. A Ford, inclusive, foi uma das mais rápidas em
propor e captar estes incentivos. Ela conseguiu participar do regime do nordeste
com a aquisição da empresa Troller. A princípio a Troller não era de interesse.
A Ford só mantém aquilo “vivo” por conta do regime do nordeste. Foi uma ação
rápida. Ninguém havia pensado nisso; a Ford pensou. Portanto, por todos os
números que você listou, que seria o resultado do fechamento dessa planta, acrescido
do histórico da Ford no Brasil, tudo isto deveria fazer com que as três esferas
de governo entrassem com muita força nesta discussão. As empresas são muito sensíveis
à pressão política. O Estado brasileiro, em todas as esferas, incluindo o Judiciário
e o Parlamento, deveria se envolver com muita energia, com muita força, com
vista a fazer valer os interesses nacionais. Se o jogo é para valer, se é de
verdade, a empresa percebe. Ela tem quadros experientes, que sabem como é que
as coisas funcionam. Eles estão mobilizando a bancada baiana, para não permitir
que o regime do nordeste seja alterado. Nós, do TID-BRASIL, também não queremos
que o regime do nordeste seja alterado. Não se trata disso. Trata-se de
pressionar politicamente a Ford. Fazer semelhante ao que o governo francês fez
com uma fábrica de motores que emprega 800 empregados e que tem uma dimensão
muito menor que a de São Bernardo do Campo. Entretanto, se não fosse o estado francês
há cerca de dez anos, essa planta estaria fechada há mais tempo. Ela se manteve
aberta por mais dez anos, porque o estado pressionou. Somente agora, diante dessa
nova direção da empresa, é que voltaram a anunciar o fechamento definitivo da
unidade. Mas, reafirmo, são 10 anos a mais fruto desta “batalha”. Aqui, no
Brasil, no caso específico de São Bernardo do Campo, as implicações são muito
maiores. A Ford é muito mais para o Brasil do que a Ford é para a França, em
termos econômicos, sociais e tecnológicos. A fábrica de São Bernardo do Campo foi
a primeira a lançar o banco de horas, o regime de layoff, a Participação nos
Lucros e Resultados. A fábrica de São Bernardo lançou tendências no mercado
automotivo, melhorias tecnológicas em motores, o segmento de SUV, o segmento de
comerciais leves. A fábrica tem uma relação com o país que deveria promover
posições e reações firmes nas pessoas que dirigem o Brasil. Entretanto,
infelizmente, isto não tem acontecido com boa parte do estado brasileiro.
Entrevistadores: Supomos que você faça
bastante referência ao Governo Federal, mas e quanto ao Estado e Município?
Rafael Marques: Com relação à
Prefeitura de São Bernardo e ao Governo do Estado de São Paulo, existe um acordo
sendo construído. O Governador aderiu à tese da venda da unidade fabril para
outra montadora. A reação poderia ter sido outra, mas ele aderiu à referida
tese. É, nesse momento, uma contribuição do Estado de São Paulo. Trata-se de
uma venda para outra montadora. Seria para manter a planta como produtora do
setor automotivo. Dificilmente haveria uma conversão da empresa para produzir
outro tipo de produto. Até dá para fazer, mas é difícil. Eu mesmo cheguei a
pensar em produtos na área da defesa e segurança. Isto, se nada der certo. A
gente pensou em vários aspectos. O governador aderiu à tese da venda porque não
conversou com a gente. Conversou com a empresa. Tinha que ter conversado
conosco antes. Mas não dá para negar que é uma tese. Mais ainda: é a tese que
está permeando o debate, que nos foi dito pela direção global. Espero que se
torne de fato uma alternativa. Por sua vez, a pressão do Prefeito de São
Bernardo do Campo é evidentemente muito mais política. Mas ele tem se colocado
no debate. Seria um absurdo ele não se colocar, é claro. Então, está ocorrendo
um envolvimento dessas duas esferas, Governo do Estado e Município, em nível mais
baixo do que deveria, mas está havendo. O que quis enfatizar é que falta ao atual
Estado brasileiro a capacidade de mensurar o alcance dessa decisão da Ford e do
seu papel para intervir, e até mesmo alterar, no curso da decisão de uma
multinacional.
Entrevistadores: Isto poderia ser um
sinalizador de como os países em desenvolvimento podem se relacionar com uma
multinacional...
Rafael Marques: Exatamente. E o que
deixar de ser feito com a Ford pode levar a outras decisões empresariais
semelhantes, pois já se sabe que não haverá tanta resistência. Então, tem que
ter resistência, inclusive para impedir que outras empresas tomem uma decisão
parecida.
Entrevistadores: Lemos na imprensa que
as lideranças sindicais dos Metalúrgicos do ABC denunciam que a Ford está
utilizando dinheiro público provenientes de programas que objetivam impulsionar
a expansão dos investimentos automotivos no país, em especial nas regiões Norte
e Nordeste, para alavancar as despesas diversas (inclusive rescisões) que
envolvem o fechamento da fábrica de São Bernardo do Campo. Vocês de fato
pretendem travar esta luta?
Rafael Marques: Há um debate em
relação a este ponto, que precisa ser construído, e mais comentado no campo
jurídico. Havendo sucesso nesta questão da aquisição da fábrica por outra
empresa, nós precisaremos avaliar. Nós não estamos querendo prejudicar e nem
atrapalhar as relações comerciais, e tampouco a nossa relação com o Sindicato e
os trabalhadores de Camaçari. Não me sinto no direito de atrapalhar mais de 10
mil trabalhadores de lá. Então, não estamos trabalhando com a perspectiva de
atrapalhar as operações de Camaçari. Mas o fato é que o negócio de Camaçari existe
por força de lei. É o incentivo fiscal que está mantendo a fábrica de Camaçari.
Nós temos que alertar o sindicato de lá e os próprios trabalhadores que a Ford
tem que “desmamar” desse regime. Ela não pode ficar a vida inteira dependendo
do incentivo fiscal. Camaçari só existe em regime especial. Isto nós temos que
dizer aos nossos colegas na Bahia.
Entrevistadores: O caminho é discutir
dentro do Programa Rota 2030. A questão que você coloca é: como os incentivos
que beneficiam determinadas regiões novas não podem prejudicar regiões
tradicionais?
Rafael Marques: Sim, é preciso, no
Rota 2030, “calibrar” melhor os incentivos. O debate agora é de carro elétrico,
mobilidade, novas tecnologias, novos materiais, mas o Sindicato dos
Metalúrgicos foi excluído. Hoje a entidade que está lá, em nome dos
trabalhadores, é a UGT. Então, nós precisamos reconstruir as relações, porque
quem tem as propostas somos nós do ABC. Nas últimas décadas, o sindicato foi um
dos protagonistas e agora a gente é excluído de um debate importante. Então, é
preciso colocar esses elementos. É preciso ter história, pé no chão de fábrica,
para alcançar o melhor resultado destas negociações.
Entrevistadores: No caso específico da
Ford, há algum acordo marco internacional assinado? Se não há, a empresa certamente
tem um programa de responsabilidade social. Há algum caminho por aí, visando
mostrar a contradição da empresa?
Rafael Marques: Sabemos que os
programas de responsabilidade social e os acordos marco global somente funcionam
em épocas fora de crise. Quando a crise ocorre, tal qual esta pela qual estamos
passando, de transição entre o convencional e o novo, aí, neste momento, a financeirização
e o mercado dominam. São os acionistas que ditam as regras. Esses conceitos
todos são importantes, são valiosos, não dá para desmerecer. Em vários momentos,
é este tipo de programa e acordo que buscamos acionar. Na Rússia, foram vários os
problemas enfrentados pelo movimento sindical russo na Ford. Estes instrumentos
nos ajudaram a levar os problemas que estão acontecendo na Rússia para o conhecimento
do board de avaliação da empresa nos Estados Unidos.
Há um comitê internacional que se reúne periodicamente. A direção da empresa
vai e faz uma fala, apresenta seus principais quadros, a situação da empresa
etc. O conselho ouve também o movimento sindical. Então, isso é importante. Não
dá para negar. Isto, entretanto, não inibe as decisões da empresa. Esta coloca essa
visão em xeque, quando é necessário. Neste momento, a direção da empresa está
convicta de que é necessário o fechamento de fábricas. Aí eles começam a fazer
as ações independentemente de que país se está tratando, se existe ou não
relação sindical naquele país. Mesmo o Estado brasileiro dando um volume
elevado de incentivos, a empresa passa por cima disso e executa a decisão,
considerando que depois, com o tempo, as relações voltam ao normal. Quando nós dissemos
à direção que a decisão do fechamento teria um grande impacto sobre a marca,
eles disseram: sim, nós sabemos, mas daqui a um tempo a gente lança um produto vencedor
e recuperamos a marca. Essa é a visão deles: daqui a pouco haverá um produto
bom, o Brasil gosta e a gente se recupera.
Entrevistadores:
Diante da irredutibilidade da Ford em reverter sua decisão de fechamento da
fábrica de São Bernardo do Campo, qual a estratégia para manter a atividade
industrial na planta? Há alguma possibilidade dos próprios trabalhadores
assumirem a gestão por meio de uma Cooperativa de Produção?
Rafael Marques: Discussão de maneira organizada,
não há. Existe, sim, muita conversa entre os trabalhadores da fábrica. O Sindicato
já tem conhecimento, know-how, de como mobilizar os empregados para montar uma
cooperativa. Tem capacidade e liderança para isso. Todos os empregados confiam
no sindicato. Boa parte, inclusive da área técnica, teriam a capacidade para
este tipo de via. Entretanto, como falei para vocês, o pressuposto da Ford,
para fazer uma negociação com os eventuais interessados, é capital, capacidade
técnica e industrialização. O Sindicato teria a industrialização, a capacidade
técnica de pessoas. Entretanto, se trata mais do que isso. Este é um setor
muito complexo. Nós teríamos que mobilizar uma rede de distribuidores e de
fornecedores para ter uma participação diferenciada num modelo dessa natureza. (...)
Eu acredito que tem fornecedores que não fariam um desconto significativo para
não ser associado como um elemento de interferência na concorrência entre
montadoras, e assim não perder clientes. Conversei pessoalmente com um ou outro
dirigente de empresa e percebi que haveria muita dificuldade para este caminho.
Deram-me inclusive o exemplo da Cosmo. Quando da crise da Chrysler, a Cosmo
pensou em assumir alguma unidade da Chrysler, não todas as fábricas. A Cosmo
percebeu que não teria capital e que ela perderia clientes. Então tem um jogo,
uma forte pressão nesse sistema. Teria que haver um esforço do Estado Nacional
muito grande para dar certo. E isto exige uma visão do Estado que não predomina
no Brasil hoje. Isto porque seria necessário um forte apoio do BNDES, o apoio
de universidades. Uma mobilização do Estado como aconteceu com a Embraer na
década de 1960. Uma mobilização muito forte para poder encorajar a parte
privada do negócio. Isto não é algo tão fácil. Em suma, teria que ter um
arranjo político institucional, algo muito distante da realidade do Brasil de
hoje.
Entrevistadores:
A visão que se tem em relação ao automóvel mudou em alguma medida neste início
de século XXI. Os aplicativos de compartilhamento e de mobilidade, as
preocupações ambientais, o excesso de frota em circulação e as dificuldades de
estacionamento, entre outras, parece tirar gradativamente do automóvel o
símbolo do sonho e do objeto de desejo dos consumidores. A seu ver, que papel
estará reservado para a indústria automobilística nas próximas décadas?
Rafael Marques: A indústria
automobilística tem que se reinventar para continuar no centro da estrutura
industrial. Veja-se, por exemplo, que o atual Diretor de Finanças da Ford,
Robbie Shell, deixou a Direção e quem o substituiu foi um ex-executivo da Amazon.
A Ford está buscando quadros dessas novas empresas digitais. São essas empresas
que estão, de fato, definindo as tendências. Há uma disputa acirrada entre as
grandes corporações, com vista a permanecer “no jogo”. Hoje a Starbucks vale 5
vezes mais que a Ford. Mundialmente falando, a Ford vale 36 bilhões de dólares.
A Starbucks vale 150 bilhões de dólares. É uma diferença absurda, mas este é um
dado da realidade. A Amazon vale 800 bilhões de dólares! Neste contexto, existe
um movimento muito forte da Ford no sentido de uma cooperação com a Volks. Ainda
temos pouca informação a respeito. A empresa está mantendo um elevado sigilo
sobre este movimento. Só abriram aquilo que já é líquido e certo, tal como o
acordo de cooperação com a Ranger da Argentina. Mas a tendência aponta para uma
parceria estratégica entre dois grandes gigantes para se sustentar em relação aos
novos “ventos” que já chegam no mercado. Com efeito, quem serão os compradores
de carro? É o UBER? São os aplicativos? As pessoas continuarão sendo
proprietárias de carro? Eu acho até que sim, mas, diante do que é hoje, muita
coisa vai mudar. Assim, há um movimento privado muito forte, não é um movimento
de Estado. A guerra comercial com a China, promovida por Trump, piorou muito os
negócios da Ford, tanto na China quanto nos EUA. No Brasil, debate-se muito
pouco sobre tudo isso, isto é, como será a indústria brasileira do futuro. A
Alemanha e a França estão montando uma cooperação entre os dois países e, nesta
cooperação, estão estruturando um fundo para não desnacionalizar as suas
empresas. Esse é o caminho. Não é só o setor privado que tem que se juntar para
enfrentar tudo que vai acontecer de mudança tecnológica, de mudança no perfil
de consumidor, de transformações nos produtos. Os Estados Nacionais têm que
tomar medidas para preservar o que ao longo de mais um século foi construído.
Isto porque a economia digital americana somando ao “apetite” da China são dois
fatores importantes que alteram as regras do jogo. As nações têm que tomar
medidas tal qual a Alemanha e a França estão fazendo. Já mencionei também o que
aconteceu com uma planta da Ford na França, que não foi fechada em função da
forte intervenção do Estado. A Ford teve que achar um interessado e manter a
atividade industrial naquela planta, naquele local.
Entrevistadores:
O IBGE acaba de divulgar que a participação da indústria de transformação no
PIB atingiu o menor nível em 18 anos: 17,4% em 2005 contra 11,3% em 2018. Visto
a partir de uma perspectiva nacional, quais, a seu ver: a) as causas desta
queda vertiginosa de participação da indústria; b) as soluções (isto é, ações,
medidas e políticas) necessárias.
Rafael Marques: Os fatores
macroeconômicos foram importantes neste processo. A economia brasileira nas
últimas décadas passou a operarem um sistema livre de proteção. Outro elemento
é o fator China. A China atraiu muito empresário para comprar itens produzidos
naquele país. Eles exportam muitos manufaturados para o Brasil. Além disso, o
câmbio para a indústria brasileira não foi nada amigável. O câmbio facilitou que
se comprassem produtos manufaturados de todo o mundo. Isto contribuiu para
gerar falta de competitividade na indústria brasileira. A carga tributária
sobre a indústria também é muito alta. Ela também não é muito amigável. Ela é amigável
para alguns setores, para os serviços, por exemplo. Mas para a indústria a carga
tributária é cheia. Estes fatores que mencionei, é verdade, sempre existiram.
Entretanto, o mundo evoluiu. A competitividade no mundo aumentou. A tecnologia evoluiu
intensamente. O Brasil, no entanto, foi ficando para trás. Nos anos de 1980,
nós tínhamos um sistema de indústria compatível com o padrão mundial. Havia o
gap industrial entre países avançados e países periféricos, mas não era um gap
assim tão impactante. Então, parte dessa crise atual concentra-se na indústria,
especialmente a indústria paulista. Parte dessa crise repousa na indústria de
São Paulo. A outra parte é a financeirização da economia, na qual muitos
empresários industriais viraram rentistas.
Neste ambiente, o empresário é rico e
a empresa é pobre. Então, há também a questão da mentalidade empresarial
brasileira. O setor industrial sofreu grande movimento nos últimos. No início
da década de 1990, no Governo Collor, houve grande desnacionalização da
indústria brasileira. Isto também aconteceu com a cadeia fornecedora da
indústria automobilística. Houve ganhos elevados, até gigantescos da indústria
no passado. Então o empresário, ao reinvestir na sua empresa, alcançava seis,
sete por cento de taxa de retorno. Se
ele coloca esse dinheiro no mercado financeiro, vai ter as vezes 20% ao ano de
rentabilidade, mais do que isso as vezes. Depende do período. Logo, isso nos
levou a uma situação de perda de “apetite” do empresário industrial. O
deslocamento dos recursos para o mercado financeiro brasileiro também foi muito
importante, especialmente aqui na indústria paulista. Tome-se o caso da Proema,
empresa do setor de autopeças. A Proema foi um dos poucos sistemistas
brasileiros que ainda sobreviviam em 2013. Mas ela tinha milhões, centenas de
milhões aplicados fora do Brasil. Enquanto a gente tinha que discutir
alternativas para a empresa não fechar, o proprietário estava milionário. A
Proema, infelizmente, não é a exceção.
Entrevistadores: E quais os caminhos
de solução?
Rafael Marques: Quando o Governo
Federal, nos primeiros anos da década de 2010, começou aquela pressão para se
reduzir a taxa de juros, o governo deu um sinal positivo para o país. Se você
chegar num banco com 100 mil reais para aplicar, ele vai te dar uma
rentabilidade. Se você chegar com 10 milhões, ele vai te dar o limite do banco.
É preciso enxugar o sistema financeiro, fazer o sistema financeiro se voltar
para o empréstimo produtivo, ao empréstimo de negócios. Há que se reestruturar
o sistema financeiro nacional para que ele volte a ter a funcionalidade que já
chegou a ter no passado. Bancos voltados à atividade produtiva que gera
empregos e negócios. Os bancos não podem se voltar apenas à especulação que
marcou os últimos 30 anos. Cria-se uma mentalidade doentia. Quem tem dinheiro
acaba se tornando um especulador. É fundamental mudar isto, porque se o
empresário quer trabalhar e ganhar dinheiro, ótimo. Agora, se a mentalidade é
contratar uma consultoria financeira e com o dinheiro ir para Miami... Temos
que aprofundar o tema da nova indústria, das tecnologias, realizar um hub muito
forte, um movimento para a inovação. O Brasil ainda tem muitos industriais sérios
e que sabem que, por exemplo, um produto como um celular não dura muito tempo.
Então, para um empresário fazer celular no Brasil, é necessário que tudo esteja
à disposição aqui ou nunca vai fazer. Um celular dura três anos, dois anos. Então, quando se define um projeto e não se tem
material aqui, e se passa a produzir o material, outros já apareceram. Com o
carro vai ser a mesma coisa. Com a televisão, também. Tudo está mudando muito
rápido. Então é preciso se ter a capacidade técnica aqui para não ficarmos
defasados em relação às outras indústrias e empresas no mundo. O sistema é esse,
de lançamentos contínuos. Um carro antes ficava 20 anos rodando. Hoje é menos
de 10, e este número vai cair. Os carros vão baratear, vão ter menos peças. O
carro elétrico vai ter menos peças, um carro híbrido um pouco mais. Nós temos
que valorizar o etanol. Nós temos que valorizar alguns diferenciais do Brasil.
Por exemplo, no caso do carro elétrico, se você considerar toda a cadeia, ele
pode ser mais “sujo” que um carro a etanol. Na China, certamente, muito mais
sujo, porque lá é a base de termelétrica. Na França, é limpa, porque lá é usina
nuclear. Então, se você pegar toda a cadeia, às vezes não vale a pena em termos
ambientais. Essa é uma disputa que tem que ser feita. O Brasil tem que participar.
Nós temos que achar um nicho, um caminho no qual a gente esteja no jogo.
Entrevistadores: Você apresentou uma
visão dos problemas e soluções para a indústria brasileira. Claro que muitos
dos caminhos valem para a indústria do Grande ABC. Mas gostaríamos que você
tratasse agora da estrutura industrial do Grande ABC.
Rafael Marques: Nós padecemos por
estar em uma área metropolitana, uma das mais adensadas do mundo, com alta
valorização imobiliária. Temos um sistema de logística que, a despeito de todo
o empenho e do volume de investimentos realizado com o rodoanel e outras vias,
ainda é um sistema que perde, quando comparado com outras regiões potenciais do
Brasil. Observando-se outros países, como o caso da Alemanha, o trem chega
direto no pátio da fábrica, trazendo as peças. Isto tem relevância enorme do
ponto de vista da competitividade. Isto é algo que o Grande ABC não terá no
curto, no médio e mesmo no longo prazo. Veja-se o caso de Santo André, que,
entre o final do século XIX e primeira metade do século XX, chegou a ter a
ferrovia para atender ao café e as primeiras indústrias. Entretanto, o sistema
ferroviário foi todo desestruturado. Hoje, nós dependemos de rodovia. Logística
é fundamental para as operações industriais e, no Grande ABC, tornou-se fator
de estrangulamento. O tempo todo tem que se reinventar e achar soluções para
este problema. Eu acredito que o Grande ABC tem que focar na tecnologia. Temos
recursos humanos qualificados, uma rede de universidades. A região tem que
atrair para cá o que tem de mais moderno. E a atividade deve ter uma taxa de
retorno mais elevada. A Toyota está fazendo a reconversão de sua fábrica em São
Bernardo, para um centro de desenvolvimento. Quase todo o desenvolvimento que é
feito no Brasil vem para cá hoje. Nós, em nossa relação com a Ford, tentamos
isso com a direção global. O Brasil é um pólo não só da América do Sul, mas do
hemisfério sul. Desta maneira, nós poderíamos transformar a fábrica de São
Bernardo numa fábrica de desenvolvimento. Sendo um país pólo, o Brasil poderia
trazer as novas áreas de desenvolvimento, as novas técnicas, iniciar um
processo que a Toyota tem gradativamente feito. Nós levamos isso para eles como
uma possibilidade. Mas eles não avaliaram essa hipótese. Nosso problema também
é que não há política pública neste sentido. É necessário que o governo de São
Paulo adote uma postura mais ativa de apoio e fortalecimento da sua estrutura
industrial, e de explorar melhor seus diferenciais competitivos, como a área do
conhecimento. É necessário que seja constituído e integrado uma espécie de rota
paulista de tecnologia conectado à indústria, e criar os mecanismos. Isto
ajudaria inclusive a Região do Grande ABC.
Entrevistadores: quem participaria
desta discussão, o governo, as associações empresariais, as universidades, os
centros tecnológicos, os laboratórios, o Instituto TID-BRASIL, os sindicatos e
outros?
Rafael Marques: Evidentemente que
participaríamos. Estivemos recentemente em diálogo no Sindipeças. A conversa
foi um pouco em torno disso: o que fazer no Estado de São Paulo e no Brasil,
para criarmos uma nova onda de expansão industrial. Olhando em retrospectiva,
sabemos o quanto foi necessário elevar as barreiras para proteger a montagem da
indústria no Brasil, mas temos que reconhecer que elas foram excessivas e por
um tempo muito longo. Isto justifica parte do atraso de nossas indústrias em
termos de técnicas, no que tange ao desenvolvimento. Precisamos chegar a um
consenso mínimo quanto ao diagnóstico, para, daqui para frente, dar às empresas
uma capacidade de desenvolvimento que elas nunca tiveram em São Paulo. Isto,
reafirmo, ajudará em muito a Região do Grande ABC, que ainda sedia montadoras
importantes, mesmo com toda essa discussão em torno da Ford. E, se há
interessados pela manutenção da atividade industrial na fábrica da Ford, este é
um mérito da região e da própria fábrica. O parque industrial da Ford em São
Bernardo, do ponto de vista técnico, é relevante. Em suma, o Grande ABC tem que
“correr”. O Estado de São Paulo tem que “correr”. Os municípios do Grande ABC
têm que “correr”. A cada ano que passa fica mais difícil reverter o gap de
competitividade.
Entrevistadores:
Como você vê as ações e os programas para implementar a chamada “Indústria 4.0”
ou “Manufatura Avançada” no Brasil e no Grande ABC Paulista? Será uma saída
para a indústria brasileira ou mais uma crise anunciada?
Rafael: Eu acho que a indústria 4.0 é,
ao mesmo tempo, uma solução e uma crise anunciada, se não tomarmos medidas
corretas. Se tomarmos as medidas certas, nós vamos ter a indústria preservada.
Isto não quer dizer que vamos ter os mesmos empregos. Vamos ter menos empregos.
Mas, existindo um pólo 4.0 no Brasil, você herda a partir daí uma coisa boa da
Indústria 4.0. Do jeito que está hoje, nós vamos ter os impactos negativos nos
empregos e não vamos ter a parte positiva da Indústria 4.0. Os impactos
positivos vão se concentrar fora do país. E a Indústria 4.0 pode ter
rebatimento na gestão pública, nas cidades, nos serviços. Se o país crescer em
taxas significativas, inserido em uma trajetória tecnológica, teremos um
cenário de preservação da indústria com atualização e competitividade. Teremos
uma mudança muito forte e redução de emprego. Por outro lado, nascerão
oportunidades em outros campos. Se não estivermos neste debate, nós vamos só
importar produções externas. E excluídos completamente do jogo.
Entrevistadores:
O chamado “modelo tríplice hélice” - que, nos países avançados, aproxima o setor
produtivo, as universidades e a gestão pública em torno de projetos
estratégicos, desde o seu nascedouro na forma de pesquisa básica e aplicada até
a fase do negócio comercial em si – é considerado como fator de promoção de
desenvolvimento e competitividade. Como você vê este tipo de caminho para a
indústria brasileira? Que ações seriam prioritárias para implantar e aprofundar
este caminho?
Rafael Marques: É preciso criar uma
cultura para gerar este modelo. O Brasil vive uma crise política muito grande.
É inexplicável a desagregação política no Brasil. Hoje, por exemplo, estamos
muito longe de modelo tríplice hélice no Brasil, que funcione para valer. Temos
um país com muita dificuldade de exercer o diálogo entre instâncias de poder,
uma crise das instituições. Isto se reflete inclusive em setores empresariais
importantes. Os atores e instituições não estão muito dispostos a debater, a
ver a realidade de uma maneira um pouco mais abrangente. Quem está conseguindo
manter isso, por exemplo, a Alemanha, passou pela crise ancorada na busca do
entendimento. Aqui, no Brasil, no período recente, vivemos, infelizmente, o
conflito como prioridade. O conflito pelo conflito. E pelo conflito não vai se chegar
a lugar nenhum. O modelo tríplice hélice é algo que precisa entrar pouco a
pouco na cultura dos atores e instituições. Os partidos políticos inclusive
poderiam também ganhar pouco a pouco esta cultura, para poderem contribuir
também com esse debate. Temos partidos fracos no Brasil, embora o Congresso Nacional
seja forte. Precisamos começar a trabalhar esse tema publicamente, inclusive
nas instituições políticas. Isto é necessário, porque o Brasil não vai dar
certo com esse nível de confronto tão elevado entre esquerda e direita. Há um
desaparecimento do centro político. Portanto, a conclusão é de que este modelo é
sim bastante importante, mas ele terá que entrar pouco a pouco na cultura das
instituições. Hoje, mesmo as universidades estão pouco preparadas para isso.
Lideram projetos relevantes, mas são projetos individuais, não inseridos em um
projeto de desenvolvimento nacional e regional mais amplo. São projetos
“soltos”. O mesmo acontece com o empresariado que desacreditou no país, mas
que, de alguma maneira, continua ganhando dinheiro. O poder público está em
crise. Então é preciso restaurar isso. É fundamental uma interlocução. Acho que
tem como a gente colocar isso como prioridade. Entretanto, tenhamos claro que
este tema não é algo que está hoje na mesa de nenhuma das esferas que a gente convive.
Entrevistadores:
Para finalizarmos. São grandes as transformações econômicas e sociais no mundo
contemporâneo. A indústria e os serviços se mesclam. A manufatura é fortemente
impactada pelas novas tecnologias digitais. A organização empresarial em rede é
uma realidade, de maneira cada vez mais global. Mobilizações e desmobilizações
do capital em sua forma física (fábricas, equipamentos, pessoal) são cada vez
mais rápidas e frequentes. A flexibilidade é a palavra de ordem do capital.
Assim, qual o impacto tal cenário traz em termos de mudança na estrutura e ação
sindical?
Rafael Marques: É preciso adotar
medidas que dialoguem com este cenário. Se formos “brigar” contra estas
tendências, ficaremos totalmente defasados. Estamos diante de novos
pressupostos. Estes pressupostos não vão se alterar. Trata-se de uma revolução
no modo de produzir produtos e serviços. Por conseguinte, os sindicatos também
têm que relacionar em rede. É essencial uma estrutura cada vez mais
internacional, relações internacionais e nacionais mais fortes. As entidades
estão hoje implantadas e organizadas em base territorial. Isto não serve mais.
É preciso avançar para a fusão de sindicatos. É importante sindicatos cada vez
mais “gerais”, capazes de lidar com temas amplos e complexos. Por exemplo, é
preciso organizar um sindicado nacional da indústria. O problema do fechamento
da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo rebate no setor plástico, no setor
químico, no setor financeiro. Mas, hoje, os sindicatos não se sentem ameaçados.
É como se dissessem: “nós, que não somos metalúrgicos e não estamos no Grande
ABC, não temos nada a ver com isso”. Ou “nós não temos o que fazer sobre isso”.
É lógico que eles têm o que fazer, mas do jeito que está hoje, é impossível
perceber. Portanto, é essencial a reconstrução dos sindicatos no sentido de
sindicatos mais gerais. Isto para ter a capacidade de lidar com os temas que
estão surgindo, estarmos preparados para essas novas tendências. A gente tem
aquela nossa máxima: sua organização é o local de trabalho. Isto vai continuar
valendo, mas de uma maneira muito mais flexível. Na Ford mesmo, tem uma parte
do pessoal que hoje está trabalhando mais em casa. Está trabalhando. Não sei se
este modelo é bom ou ruim, mas é o modelo que já existe e vai crescer. Não podemos
estar engessados em modelos historicamente consagrados. Precisamos ter a capacidade
de, na mesma capacidade da manufatura e dos negócios, transformar os
sindicatos. Vai ter que ocorrer mais cooperação entre as entidades. Do jeito
que está hoje está muito bom para as empresas. É muito bom para a Ford. Somente
ter os metalúrgicos do ABC na luta pela preservação da planta em São Bernardo
do Campo e não os demais metalúrgicos, os químicos, os plásticos, os bancários
do Brasil. Não devia ser assim, mas é como hoje se apresenta.
Entrevistadores
Jefferson José da
Conceição.
Coordenador do Observatório CONJUSCS. Graduado em Economia pela UFRJ; Mestre em
Administração pelo IMES; Doutor em Sociologia pela USP. Assessor
da Pró-Reitoria de Graduação e Prof. da USCS. Prof. Colaborador do Mestrado em
Economia da UFABC. Secretário de Desenvolvimento Econômico de São Bernardo
(2009-2015). Superintendente do SBCPrev (2015-2016). Diretor da Agência São
Paulo de Desenvolvimento (2016). Técnico licenciado do Dieese. Blog: www.blogdojeff.com.br. Currículo Lattes http://lattes.cnpq.br/2840533692107428
Gisele
Yamauchi. Economista formada pela USCS.
Turismóloga pela Universidade São Judas Tadeu. MBA Empresarial e Industrial
pela USCS. Mestranda. Foi bolsista pelo Governo Japonês em Programa de extensão
da Japan International Cooperation Agency (JICA), no curso de Kaizen e 5S´s.
Pesquisadora do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e
Conjuntura da USCS - CONJUSCS.
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