Roberto Vital Anau1 roberto.vital@saobernardo.sp.gov.br
Jefferson José da Conceição2 jefersondac@ig.com.br
Resumo
O texto parte de uma breve recuperação do sentido histórico do
conceito de “trabalho decente”, identificando na queda do modelo de produção
fordista do pós-guerra e na perda de hegemonia das políticas keynesianas, e suas substituições,
respectivamente, por um novo modelo de produção e pelas políticas neoliberais,
das quais as formas de trabalho desprotegidas e precarizadas são parte
constitutiva, um marco neste debate. Em uma segunda parte, o texto sugere
linhas concretas de ações para o enfrentamento do desafio de implementar o
trabalho decente no Brasil, conforme estabelecem as normas da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Destaca-se ao final o ineditismo da recente
assinatura do Decreto Municipal de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo,
em prol do trabalho decente nos contratos envolvendo o Poder Público e as
empresas ganhadoras de licitações.
Palavras-chave: trabalho,
regulamentação do trabalho, sindicalismo.
Abstract
The text begins with a brief recovery of the historical sense of the
concept of “decent work”, identifying in the fall of the Fordist production
model and the loss of hegemony of Keynesian economic policy and their
replacement, respectively, by a new model of production and neo- liberal policies
- in which unprotected and precarious labor relations are part constitutive – a
milestone in this debate. In a second part, it suggests concrete line of action
for confronting the challenge in order to implement decent work in Brazil, as
established by the International Labour Organization (ILO) standards. In the
end, it is highlighted the pioneering initiative of the recent signing of the
Decree by the Municipality of São Bernardo do Campo, Great São Paulo, in
support of decent work in contracts involving the Government and the winning
companies from public biddings.
Keywords: labor, labor regulation, unions.
1. Introdução
Este artigo trata do conceito de trabalho decente, sua
referência histórica e possíveis caminhos para sua implementação no Brasil. A
Agenda Nacional do Trabalho Decente, proposta em âmbito mundial pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi objeto de um Memorando de
Entendimento do Governo Federal com a entidade em 2003 e foi lançada
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1 Graduado em Ciências Econômicas pela FEA-USP e mestre em
Estruturas Ambientais Urbanas pela FAU- USP. Assessor da Secretaria de
Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo da Prefeitura de São Bernardo do Campo desde 2009.
2 Graduado em Ciências Econômicas
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Administração pela
Universidade Municipal de São Caetano do Sul e Doutor em Sociologia pela FFLCH
da USP. Secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo da Prefeitura
de São Bernardo do Campo (desde 2009).
efetivamente em 2006, cabendo ao
Ministério do Trabalho e Emprego a sua implementação3. Desde então,
ocorreram adesões de alguns entes federados. Destacamos o Estado da Bahia, que
lançou a Agenda Bahia de Trabalho Decente em 06/12/2007 e mantém ativo o Portal
do Trabalho Decente (http://www2.setre.ba.gov.br/trabalhodecente/index.asp).
Trata-se de uma iniciativa da maior importância, que dá exemplo aos demais
estados brasileiros, sendo de esperar que ocorram novas adesões estaduais. Por
sua vez, no Município de São Bernardo do Campo (SP), a Prefeitura editou um
Decreto Municipal de Incentivo ao Trabalho Decente, em 09 de abril de 2010.
Esta iniciativa se reveste de importância pelo seu pioneirismo no âmbito
municipal. Ela se antecipa, de forma ativa, à atividade do Grupo de Trabalho do
Grande ABC para elaboração da Agenda Regional do Trabalho Decente, criado em
março de 2009, o qual instalou seu Comitê Gestor em fevereiro de 2010 e
realizou uma Conferência Regional de Trabalho Decente em maio de 2010.

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3 Para uma recuperação do debate sobre o
conceito de trabalho decente no âmbito da OIT, ver ILO (2000 e 2007), DHARAM
(2006) e QUEVEDO (2008). Por sua vez, a recuperação da evolução do tema no
Brasil, em particular à luz da posição do governo brasileiro, ver MINISTÉRIO DO
TRABALHO E EMPREGO (2004, 2006 e 2007).
2. A OIT e o conceito de trabalho decente
Desde 1999, a OIT propugna pela
adoção do trabalho decente em escala mundial4. Sucessivas
conferências e fóruns internacionais passaram a se comprometer com Agendas pelo
Trabalho Decente. Esta categoria se compõe de quatro estratégias fundamentais:
1)
promover e cumprir as normas e os princípios e
direitos fundamentais no trabalho;
2)
criar maiores oportunidades para
mulheres e homens para que disponham de remuneração e empregos decentes;
3) realçar a
abrangência e a eficácia da proteção social para todos e;
4) fortalecer o
tripartismo e o diálogo social.
Dirigindo-se à América Latina em 2006, o então
diretor-geral da OIT propôs uma Agenda Latino-Americana pelo Trabalho Decente,
que deveria contemplar cinco desafios relacionados, ao mesmo tempo, à categoria
geral, acima definida, e às características específicas das sociedades e dos
mercados de trabalho latino-americanos. Esses desafios são:
a)
que o crescimento econômico seja promotor do emprego
para todos;
b)
que os direitos do trabalho sejam cumpridos e
efetivamente aplicados;
c)
que a democracia seja fortalecida;
d)
que sejam adotados novos mecanismos de proteção
adequados à realidade atual;
e)
que, por essa via, a exclusão social seja combatida.
Cada um dos aspectos mencionados requer uma discussão
concreta. No entanto, a própria circunstância de a OIT se ver na contingência
de lançar essa proposta merece ser explicada. E são fatores históricos, com
ênfase nos planos político, social e econômico, que permitem compreender a
emergência desse eixo de atividade da organização na última década.
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4 A bandeira do trabalho decente tem como pano
de fundo um quadro social alarmante de desemprego e pobreza. Havia
aproximadamente 195 milhões de desempregados no mundo em 2005. Por sua vez,
cerca de metade de todos os ocupados (1,4 bilhão de pessoas) vivia com menos de
US$ 2 por dia. Outro ambiente marcante que guarda forte relação com a defesa do
trabalho decente por uma instituição como a OIT é a precarização das relações
de trabalho, que vai desde as modalidades degradantes do trabalho, como são os
casos do trabalho escravo e do trabalho infantil, até a difusão das formas de
contratação com nenhum ou com baixo grau de proteção previdenciária,
benefícios, remuneração e demais direitos trabalhistas.
3. O Contexto Histórico do Trabalho Decente
3.1 Guerra Fria, keynesianismo, fordismo e mercado de
trabalho
O conceito de trabalho decente é atual, mas não é uma
nova criação. Ao contrário, ele resgata aspectos centrais do que foi o período
mais avançado da história do capitalismo, em termos de direitos sociais. É no
quadro do Estado de Bem-Estar Social (welfare
state) que se encontram os paradigmas hoje perseguidos pela campanha em
defesa do trabalho decente. Por suas virtudes e limitações, esse paradigma
busca hoje uma universalização que não possuiu naquele período. As práticas e
instituições que cristalizaram o avanço social em alguns países são na
atualidade o padrão pretendido para o conjunto do planeta, ainda que os ritmos
de sua conquista e implantação (ou resgate) e suas especificidades sejam
distintos entre os diversos países e continentes.
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As três décadas que se seguiram ao término da IIa Guerra Mundial (1939-1945) foram marcadas por diversos processos transformadores. De um lado, a Guerra Fria liderada pelos EUA e pela URSS incorporou, ao lado do imaginário nuclear e de inúmeros conflitos localizados, uma efetiva corrida armamentista, responsável por boa parte da inovação tecnológica do período e mesmo das décadas subseqüentes5. Além disso, conforme previu corretamente o Memorando Nitze-Keyserling de 19486, os gastos públicos com armamentos exerciam um papel de reforço à demanda agregada nos EUA, ao contrário da URSS. Nesta, a economia estatizada não experimentava a necessidade de adequar a demanda efetiva à oferta agregada, sob condições de mercado e, em compensação, tinha nos gastos armamentistas um monumental desvio de recursos necessários à melhoria da qualidade de vida da sociedade. Nos países capitalistas, esses gastos evitavam a recessão e asseguravam elevado nível de emprego. Esse fundamento econômico teve importância próxima à dos fundamentos político- estratégicos da Guerra Fria. Ambos explicam a escalada na produção e armazenamento de arsenais nucleares, bem como as posteriores tentativas de estabelecer novos ciclos tecnológicos por meio da bomba de nêutrons (final dos anos 1970) e do projeto Guerra nas Estrelas (anos 1980). O envolvimento militar dos EUA nas guerras da Coréia e do Vietnã e
5 Ninguém ignora, por exemplo, a genealogia da Internet, que remonta
exatamente à necessidade de salvaguardar informações secretas de forma
descentralizada por parte das autoridades estadunidenses.
6 Memorando NSC-68 do Conselho
de Segurança Nacional dos EUA. Ver a respeito Fusfeld (2001, pp. 217- 219).
em golpes militares latino-americanos, entre outros
conflitos locais de impacto mundial, enquadra-se nesse contexto.
Associado à Guerra Fria, o projeto de uma política
econômica e social que evitasse grandes oscilações econômicas tomou forma nas
diversas variantes de intervencionismo keynesiano nos EUA, Europa Ocidental e
Japão. Dos fortes sistemas reguladores nos EUA aos Estados europeus mais
diretamente envolvidos com o sistema produtivo, passando pela variante nipônica
de forte engajamento do Ministério da Indústria e Tecnologia (MITI) com a
poderosa central nacional do empresariado (Keidanren), várias foram as
modalidades de intervenção econômica dos Estados capitalistas nos países
desenvolvidos, todos praticando políticas anti-cíclicas de estabilização.
A reconstrução daquelas economias no pós-guerra,
contando com expertise empresarial,
alta capacitação da força de trabalho, apoio de programas governamentais e
financiamento estadunidense à Europa e Japão por meio do Plano Marshall, não
demorou a constituir um forte setor privado. Empresas européias, nipônicas e
estadunidenses, uma vez reconstruídos seus mercados domésticos, passaram a
diversificar territorialmente suas operações, instalando filiais em diversos
continentes (HOBSBAWM, 2002). O padrão industrial fordista então vigente,
combinado com um padrão estatal regulacionista, foi determinante não apenas
para os aspectos produtivos e macroeconômicos, mas também para as relações de
trabalho e o próprio conceito de trabalho predominantes na época em foco.
O conceito atual de trabalho decente deita raízes nas
práticas consolidadas ao longo desse período. O formato típico do contrato de
trabalho nas economias centrais do capitalismo incorporava conquistas
crescentes em termos salariais, de condições de trabalho e benefícios, além de
direitos previdenciários. Esses atributos combinavam-se com políticas públicas
que disponibilizavam diversas formas de salário indireto, como educação e saúde
públicas ou subsidiadas, crédito para a aquisição de moradia e bens de consumo
duráveis, bem como ampliação das atividades de lazer acessíveis à população
trabalhadora. A institucionalização dessas relações de trabalho variou da
legislação mais minuciosa da Europa Continental aos contratos coletivos de
trabalho que incorporavam crescentes vantagens trabalhistas nos EUA.
O fortalecimento do sindicalismo e dos partidos
políticos a ele relacionados foi fundamental para o alcance desses direitos e
conquistas. Com base nas intensas lutas sociais da época e na relativa
prudência dos governos europeus, que ainda mantinham fresca a memória dos
tumultuados anos 1930, as conquistas sociais e trabalhistas se avolumaram. O
papel hegemônico dos EUA também favorecia a conquista de direitos crescentes
nos contratos de trabalho, seguindo o padrão menos legislador e mais contratual
desse país em relação aos seus pares europeus.
Assim, o emprego formal, com direitos previdenciários e
um cardápio de benefícios que se ampliou ao longo do tempo, adquiriu
características cada vez mais consolidadas. Da tradição do emprego vitalício no
Japão à relativa estabilidade empregatícia nos países ocidentais, assegurada
por sistemas crescentes de seguro-desemprego e pelo crescimento econômico do
pós-guerra (que conheceu o “milagre alemão” e o “milagre japonês” entre os anos
1950 e o início dos 1960), parecia ter surgido no mundo capitalista um
paradigma muito distinto daquele do entre-guerras. Como dito, as diversas
formas de salário indireto integravam o padrão social dessa época.
O emprego emblemático do período, nos
países desenvolvidos, era obtido junto a uma indústria ou empresa de serviços,
com registro formal, direitos legais ou contratuais e acesso à previdência
social. Os norte-americanos nascidos nesse período de afluência, logo após o
retorno das tropas da IIa Guerra Mundial, formam hoje a geração
sexagenária do baby-boom, origem dos
prognósticos pessimistas sobre o sistema previdenciário dos EUA nas próximas
décadas. É que o mercado de trabalho mudou consideravelmente desde então e a
relação entre contribuintes e beneficiários do sistema sofreu forte
deterioração, no momento em que os baby-boomers
começam a se aposentar. No entanto, em seu período formativo, essa geração
conheceu o paradigma que hoje se procura resgatar com a campanha pelo trabalho
decente.
Outra importante transformação do período ocorreu fora
do mundo capitalista desenvolvido. Na vasta porção do planeta à época
denominada de Terceiro Mundo, inúmeros países nasceram, conquistaram sua
independência ou – mesmo entre nações constituídas já desde o séc. XIX -
desencadearam intensos processos de industrialização e urbanização. O alvo
perseguido era a sociedade de consumo do capitalismo desenvolvido, com poucas
exceções
que buscaram emular a sociedade soviética estendida à
Europa Oriental (o que ocorreu particularmente na China, Vietnã e Cuba).
Nesse processo, a industrialização latino-americana,
particularmente, foi expressiva e nela o Brasil adquiriu a liderança. Teorias
originais, especialmente aquela gestada no âmbito da Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL), davam a tônica das políticas deliberadas de
industrialização substitutiva de importações. Recusava-se o tradicional modelo
primário-exportador, responsabilizado pela vulnerabilidade a crises externas,
pelo atraso sócio-econômico e pela pobreza endêmica. Tarifas protecionistas, taxas
múltiplas de câmbio, crédito para a implantação de grandes projetos industriais
e de infra-estrutura e participação direta do Estado na produção, especialmente
de bens intermediários, eram os eixos dessas políticas.
Os resultados foram contraditórios. O receituário
cepalino foi aplicado de forma incompleta. O campo ficou imune a transformações
durante as primeiras décadas, enquanto o mercado de trabalho urbano se
dinamizava. O resultado foi a manutenção da pobreza no campo e forte êxodo
rural, mantendo-se parte significativa dos migrantes à margem do novo mercado
de trabalho. A ausência de reformas educacionais e a opção por indústrias
intensivas em capital – em grande parte, multinacionais dos países
desenvolvidos que ampliavam seu raio de operações - tornaram esse quadro
inevitável. A ausência de planejamento urbano e de expansão dos serviços
sociais básicos fez com que houvesse uma transferência da pobreza rural para a
exclusão urbana, mitigada nos períodos de forte crescimento econômico.
Esses períodos não deixaram de ocorrer. O Brasil, por
exemplo, foi campeão mundial de crescimento econômico durante as primeiras oito
décadas do século XX, liderado, a partir dos anos 1930, pelo setor industrial.
No quadro de uma economia em forte expansão, parecia aos milhões de migrantes
que as novas oportunidades abertas pela indústria representavam o caminho para
o sucesso pessoal. Assim foi, com efeito, para muitos. Trabalho com carteira
assinada e direito à aposentadoria tornou-se um direito ampliado a muitas famílias
de migrantes de todos os rincões do País, nos maiores centros industriais
brasileiros. Mas uma parcela crescente ficou à margem e, ao primeiro solavanco
da economia, encontrou-se em situação de grande vulnerabilidade social.
A pretensão dos países em processo de industrialização,
particularmente na América Latina, era reproduzir os padrões de vida dos países
desenvolvidos, aí incluídas as condições do mercado de trabalho. Aceito o fato
de que à menor produtividade deveria corresponder um nível mais baixo de
remuneração média e de benefícios, o modelo a seguir era o daqueles países.
Contudo, o que se observou foi significativamente diferente, por diversas
razões.
Primeiramente, os direitos trabalhistas no Hemisfério
Norte foram arrancados à base de fortes lutas sociais, ao longo de décadas.
Particularmente nos anos do pós-guerra, as circunstâncias mencionadas acima pesaram
a favor da acumulação de conquistas legais e contratuais. Já na América Latina,
tais direitos foram concedidos por regimes que buscavam enquadrar o movimento
operário em instituições estatais e políticas populistas, evitando a
organização e consciência independente dos trabalhadores. O Brasil é
emblemático: a CLT foi criada em 1943, sob a ditadura do Estado Novo, quando as
organizações operárias haviam sido desmanteladas, seus integrantes submetidos a
brutal repressão e a massa trabalhadora se via exposta à intensa propaganda
oficial de um regime inspirado nos fascismos europeus. Não é de admirar o culto
a Getúlio Vargas como “Pai dos Pobres”, espécie de “deus ex-macchina” concessor
de direitos trabalhistas por benemerência, culto que sobreviveu à redemocratização
e perdurou muitos anos após sua trágica morte (GREMAUD, SAES E TONETO JR. –
1997, pp. 158-164).
Em segundo lugar, já se mencionou a exclusão dos
trabalhadores rurais dos direitos trabalhistas. Em grande medida, a razão foi o
pacto gestado após a Revolução de 1930, quando a burguesia industrial, agora
preponderante na condução dos negócios públicos, buscou preservar as
oligarquias agrárias em troca da renúncia destas ao poder. Esse pacto mostrou
sua viabilidade quando a oligarquia paulista ficou isolada do restante do País
em 1932, ao sublevar a classe média contra o recente Governo Provisório
varguista (idem, ibidem).
Terceiro, o padrão de industrialização seguido nos anos
1960 a 1970 permitiu a ampliação do mercado de trabalho formal a segmentos
expressivos da classe trabalhadora e aos escalões médios e gerenciais, em
expansão durante todo o período. Mas, como já referido, parcela crescente dos
migrantes rurais não se adaptava aos requisitos desse padrão. Os processos de
concentração econômica ocorridos durante os ciclos militares, quando as
condições políticas
permitiram a aplicação de medidas recessivas e a adoção
de diretrizes pró-grande capital doméstico e estrangeiro nas economias
latino-americanas, reforçaram essa tendência (VASCONCELLOS, GREMAUD e TONETTO
JR., 2007).
Dessa forma, constituiu-se um mercado de trabalho formal
ao lado de diversas formas de trabalho semi-formalizado, por tempo parcial, ou,
simplesmente, informal, que extraía renda das possibilidades de consumo dos
empregados formais, enquanto estes puderam progredir e se multiplicar em termos
quantitativos. As condições de trabalho no próprio mercado formal de trabalho
eram inferiores às dos países centrais, bem como as remunerações. Os diversos
regimes militares implantados no subcontinente reforçaram as restrições à
mobilização por maiores direitos, mantendo um patamar limitado de direitos
sociais e trabalhistas. Durante esse período, o conceito de trabalho se
identificava com as práticas e instituições vigentes no mercado formal.
Enquanto houve crescimento econômico, os segmentos
excluídos do mercado formal se ajeitavam nas margens do sistema. Tão logo se
encerrou o dinamismo econômico do subcontinente (na década perdida – anos
1980), esses segmentos foram os primeiros a resvalar para a marginalização
social. Foram seguidos, ao longo do decênio, pelos setores mais atingidos pelas
políticas recessivas entre os trabalhadores formais. No Brasil, em especial,
submetido ao controle do FMI, o desemprego retornou em grande escala nos
primeiros anos da década e o desconforto social gerado, atingindo inclusive
setores médios e o pequeno empresariado, ocasionou uma crise política que
culminou com a queda do regime militar (GREMAUD, SAES E TONETO JR. – 1997, pg. 229).
É nesse período, aliás, que se desenvolve o que se
chamou à época o “novo sindicalismo”, buscando assegurar direitos e preservar
empregos, associando essas lutas àquela mais geral pela democracia,
imprescindível para a manutenção e ampliação das conquistas sociais (RODRIGUES,
1997).
Enfim, o período que alguns denominaram “Os Anos
Dourados” circunscreveu seus efetivos avanços a pouco mais de uma dúzia de
países do Hemisfério Norte e foi reproduzido, porém com menos sucesso do ponto
de vista sócio-econômico, na América Latina. Nesta, alguns países lograram
atingir graus distintos de industrialização e urbanização, mas sem alcançar os
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padrões de bem-estar daqueles países emblemáticos. Ao
contrário, novas formas de desigualdade foram constituídas, substituindo a
antiga dicotomia rural-urbano.
Convém assinalar, como contraponto, o desenvolvimento de
algumas economias asiáticas, à época não tão em evidência. Coréia do Sul e
Taiwan também vinham se industrializando, com estratégias público-privadas
originais e uma atenção maior a algumas políticas sociais – especialmente a
educação – que na América Latina. Porém, a ascensão efetiva dessas economias só
se tornou evidente no período seguinte, simultaneamente ao grave impasse
enfrentado pela América Latina nos anos 1980, como visto a seguir.
Essa era a situação do subcontinente quando o mundo
capitalista desenvolvido passou a enfrentar fortes transformações, iniciadas
por crises econômicas e consubstanciadas em mudanças de paradigmas de política
pública e gestão privada.
3.2 Neoliberalismo, mundialização do capital e retrocesso nas relações capital-trabalho
Um olhar histórico, como o que se busca neste artigo,
produz forte impressão quando se compara o conceito e a prática do trabalho na
atualidade com o que ocorria há apenas quatro décadas, ou ainda menos. Aspectos
centrais se perderam nesse intervalo, em decorrência das profundas transformações
ocorridas no modo de funcionamento do capitalismo, seja no plano do mercado,
seja no das políticas públicas. Não se poderia compreender a presente campanha
pelo trabalho decente sem acompanhar esse processo de regressão social que
remonta às décadas citadas. A impressão nítida é que o capital, apoiado em
governos e ideologias conservadoras, buscou recuperar o que fora obrigado a
ceder aos trabalhadores e aos grupos sociais de baixa renda nas primeiras
décadas do pós-guerra.
O processo inicial dessa mudança ocorre
já vinte e cinco anos após o encerramento da IIa Guerra Mundial. De
fato, os anos 1970 trouxeram turbulências ao funcionamento do padrão dos “Anos
Dourados”. A primeira delas foi o fim do pilar monetário vigente desde os
acordos de Bretton Woods (1944), quando o Presidente Nixon decretou a
inconversibilidade do dólar em agosto de 1971. Oscilações de taxas de juros e
de câmbio marcaram os anos seguintes. Dois choques do petróleo (1973 e 1979)
tiveram impactos de custos muito fortes nas principais economias do mundo. E o
endividamento do Estado norte-americano, cuja
escalada
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parecia incontrolável, tornou-se uma preocupação
crescente para todos os operadores, dirigentes e analistas da economia
capitalista internacional. Os anos finais da década foram marcados nos EUA pela
“estagflação” – uma inesperada combinação de inflação e estagnação econômica,
contrariando os paradigmas teóricos até então predominantes.
Muitos foram os impactos desses novos desafios.
Primeiramente, a reação do Banco Central do EUA (Fed): um aumento brutal das
taxas de juros para frear a inflação. Combinado com o segundo choque do
petróleo, esse aumento levou à quebra da economia brasileira e de diversos
outros países latino-americanos. O resultado foi a ingerência do FMI nessas
economias, ocasionando fortes recessões. O desemprego em massa tornou-se uma
realidade, com grande efeito sobre as práticas do mercado de trabalho daí em
diante. Os anos 1980 se consagraram como a “década perdida” na América Latina.
Outro impacto, ainda maior porque de abrangência
verdadeiramente mundial, foi a reação teórica que se seguiu. O keynesianismo,
até então hegemônico nos ambientes acadêmicos e nas diretrizes de política
pública dos Estados capitalistas, foi seriamente questionado pela escola dos
chamados novos clássicos, apoiada na Teoria das Expectativas Racionais.
Sucessora do monetarismo da Escola de Chicago, essa corrente pregava o
afastamento do Estado de toda atividade produtiva e a desregulamentação de
atividades até então sujeitas a regras consolidadas. Entre elas, o mercado de
trabalho, cuja regulamentação legal passava a ser vista como obstáculo ao
desenvolvimento. O próprio conceito de desenvolvimento passava a ser cada vez
mais associado à simples acumulação de riquezas. Sua distribuição passava a ser
cada vez mais atribuída ao mercado. O Estado, nesta interpretação, gerava
apenas distorções e entraves ao crescimento da economia e devia voltar aos
pressupostos liberais do desengajamento econômico, deixando o terreno livre à
iniciativa privada.
A ascensão desse ideário foi concomitante a uma nova
onda conservadora na política, inaugurada pelos governos Thatcher na
Grã-Bretanha (1979-89) e Reagan nos EUA (1981- 89). Dos dois lados do Atlântico
Norte, o Estado intervencionista passou a ser satanizado, como indica o lema de
campanha de Reagan: “O Governo não é a
solução, ele é o problema”. Políticas desregulamentadoras, privatizações e
ofensivas anti-sindicais tornaram-se a regra desses governos e de todos os que
procuraram copiá-los pelo mundo afora. O desmoronamento da URSS e dos países do Leste europeu pareceram
consagrar essa visão
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radicalmente antiestatal (ANAU, 2008). E os efeitos
sobre o mercado de trabalho foram extremamente danosos.
Duas observações devem ser feitas antecedendo o foco nas
relações capital-trabalho. A primeira, sobre a queda dos regimes ditos
socialistas. Não há espaço neste artigo para analisar suas causas, mas é
inegável que a “Segunda Guerra Fria” desencadeada por Reagan – com o projeto
Guerra nas Estrelas, o financiamento a apoio ao Taliban contra as forças de
ocupação soviéticas no Afeganistão e o abandono das negociações efetivas sobre
a contenção da corrida armamentista – exerceram pressão insuportável para o já
frágil equilíbrio interno do regime soviético. Confirmou-se mais uma vez a
previsão do Memorando NSC-68 (apud FUSFELD,id., ibid.), de que, ao contrário do
Ocidente capitalista, a corrida armamentista era um peso morto para a economia
soviética, desviando recursos necessários à melhoria da qualidade de vida, em
um regime totalitário cuja eventual legitimação só poderia advir dessa melhoria.
Isso se agravava pelo acúmulo da insatisfação social ao longo de décadas,
inclusive pela inexistência de canais legítimos para expressão da sociedade.
A derrubada do Muro de Berlim e a dissolução da União
Soviética, com a conseqüente crise terminal dos regimes dela dependentes no
Leste europeu, aparentaram validar a estratégia agressiva das potências
capitalistas, embora tenham sido produzidas pelas populações locais e não pelo
enfrentamento militar. Ademais, esses processos pareceram a muitos dar validade
também às políticas antiestatais em prática desde o início dos anos 1980 na
dupla EUA/Grã- Bretanha, as quais tornaram-se um paradigma cada vez mais disseminado
no mundo capitalista (HOBSBAWM, 2002). Governos social-democratas europeus
aderiram às estratégias ligadas ao refrão “mais mercado-menos Estado”,
dissolvendo muitas das fronteiras que os separavam de seus opositores do campo
liberal-conservador, enquanto os mais fortes partidos comunistas pró-soviéticos
se transmudavam em defensores da economia de mercado “social”, alguns alterando
até mesmo suas denominações, consagradas nas décadas da Guerra Fria.
A segunda observação necessária refere-se ao impacto do
contexto internacional descrito sobre a evolução das forças políticas e das
políticas públicas na América Latina. Burguesias imitadoras sem originalidade,
incapazes de buscar sequer a essência dos paradigmas a imitar, limitando-se aos seus aspectos
aparentes e exteriores e ignorantes dos respectivos contextos
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abrangentes e dos contrapesos a tais paradigmas nos
países de origem dos mesmos, engajaram-se tardiamente no novo padrão emanado
dos países centrais do capitalismo, de forma tosca. O Consenso de Washington,
em 1989, consolidou as novas normas pró-mercado e anti-Estado para todo o
subcontinente.
Tomando o Brasil como exemplo, o País abriu seu mercado
às importações, sem negociar quaisquer contrapartidas, abriu bruscamente a
conta de capital, sem adotar qualquer estratégia gradativa, como tantos
alertaram, e passou por um processo selvagem de privatização de estatais
produtivas. Demissões de servidores, deterioração dos serviços públicos,
recessão persistente e hiperinflação se combinavam para produzir o pior dos
mundos para os assalariados e a população de baixa renda. Isso se combinou com
ofensivas anti-sindicais e de críticas em tom cada vez mais agressivo às
conquistas trabalhistas existentes.
Finalmente, em 1994, a inflação foi domada com o Plano
Real. Contudo, a estratégia de apreciação cambial prolongada não tardou em
criar impasses no Balanço de Pagamentos, forçando a elevação das taxas de juros
a patamares estratosféricos. A entrada de capitais de arbitragem (voláteis) foi
a única saída encontrada em face da insuficiência dos capitais externos
atraídos pelas privatizações, não obstante estas terem prosseguido em ritmo
avassalador. O efeito do capital volátil foi duplo: aumentar a dependência da
economia em relação a altas taxas de juros; e, em contrapartida a estas
últimas, manter o Estado brasileiro em rota de crescentes déficits, que se
buscou contornar com aumento da carga tributária, além de constranger o
investimento produtivo. Carga tributária em alta e baixos investimentos
convergiram para manter taxas medíocres de crescimento econômico e dos
empregos.
Não é de espantar a enormidade do que se convencionou
chamar de exclusão social. Desemprego persistente em patamares muito elevados,
acesso deficiente a serviços públicos, queda na qualidade destes e em sua
continuidade e acessibilidade (SACHS, 2003), desqualificação da massa dos
desempregados como “inempregáveis” (culpando-os pela sua desdita), foram a
tônica do período.
O mais grave é que não se tratou de um processo
exclusivo do Brasil. Nos próprios centros do capitalismo, as conquistas
trabalhistas e a ação sindical foram seriamente abaladas. Na Europa, a
informalidade, agravada pelas levas de imigrantes da África, Ásia e, agora, do Leste
europeu, atingiu também a capacidade de mobilização
sindical. A crise ideológica dos partidos mais identificados com o sindicalismo
contribuiu para a inércia e o desarmamento político desses segmentos face à
maré montante conservadora. O assim denominado neoliberalismo pareceu tornar-se imbatível7.
As estratégias privadas também se modificaram com o
ambiente político e ideológico descrito. Novas tecnologias, desenvolvidas nas
décadas anteriores, culminaram com a possibilidade de transmissão de dados em
tempo real e com grandes aumentos de eficiência nos transportes. Novos métodos
de produção flexível, adaptável a mercados mutantes, tornaram-se possíveis. A
transferência de plataformas de produção mundo afora tornou-se viável (POCHMANN, 2001). O capital adquiriu uma mobilidade
mundial que ultrapassava os sonhos mais inimagináveis. Podia agora explorar os
diferenciais de custo do trabalho e de regras ambientais e financeiras,
transferindo-se continuamente entre os continentes. A mundialização do capital
tinha como contrapartida a lentidão dos sistemas jurídicos nacionais e das
máquinas burocráticas dos Estados nacionais em se adaptar a novas
contingências. Adicionou-se a isso uma política ativa de bloqueio à mobilidade
internacional da força de trabalho, em contraposição à inédita liberdade de
movimentos do capital, por meio de intensas políticas de restrição à imigração
e de combate a imigrantes.
Gerou-se assim, apoiada nas ideologias antiestatais
discutidas anteriormente, o mito da obsolescência dos Estados nacionais. Ainda
mais, buscou-se convencer a opinião pública mundial de que a eliminação das
restrições legais ao pleno desfrute dos recursos humanos e naturais pelo
capital, assim como a queda de toda barreira legal ao movimento financeiro
entre países, era imprescindível à recepção de capitais aptos a escolher entre
países receptores. Segundo essa interpretação, cada vez mais hegemônica, a
negativa em derrubar tais legislações, regras e barreiras somente isolaria o
país renitente de todo o progresso tecnológico, econômico e, supostamente,
social em curso no mundo, após a vitória do capitalismo sobre seu maior
concorrente – o pretenso socialismo caído com o Muro de Berlim. A essa
tendência mundial passou-se a chamar globalização e às políticas a ela
conformes, neoliberais.
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7 Uma boa discussão das razões dessa aparente
invencibilidade, em crítica parcial a Hobsbawm (2002), é feita por Letizia
(s.d).
A propaganda do que mais tarde foi chamado o Pensamento
Único adquiriu uma força
mercadológica que chegava a igualar a força estatal da ideologia dos antigos
Estados do Leste europeu, autodenominados socialistas, que faziam passar os
regimes totalitários de partido único como o socialismo realizado na Terra. Ela
ocultava aspectos fundamentais da realidade, nem tão nova quanto se autoproclamava.
O capital sempre desejou desvencilhar-se dos controles estatais em todos os
domínios. Mas não estamos mais na época de Adam Smith, com um mercado
pulverizado em milhares de ofertantes e milhões de consumidores. Algumas
centenas de poderosas corporações mundiais e um número ainda mais reduzido de
grandes grupos e fundos financeiros controlam o essencial da produção, das
transações financeiras e do comércio internacional – na verdade, parcela muito
considerável desse comércio se dá no interior dessas corporações, entre
matrizes e filiais. E o próprio Smith alertou contra a tendência do capital,
caso não sujeito a regras estáveis, de apropriar-se em proveito próprio de
serviços de interesse público, bem como a se organizar para lesar seus clientes
e demandantes (apud HUNT, 1981). A
mitologia liberal não coincide com a obra de seu principal inspirador, nem em
sua época, nem, muito menos, na nossa.
O balanço dessa época ainda está para ser feito, mas
seus efeitos são muito visíveis. A informalidade e a precariedade nas relações
de trabalho avançaram muito nos países centrais. Os EUA vangloriam-se hoje da
flexibilidade de sua força de trabalho em relação a jornadas e outros
benefícios. Parece ter sido em outro país que o emprego paradigmático tinha
jornadas definidas, horas extras regulamentadas, salários crescentes
acompanhando a produtividade e benefícios generosos. O típico trabalhador
qualificado, com residência de bom padrão na periferia dos centros urbanos,
automóvel de modelo recente, horários regulares, filhos na faculdade e passeios
dominicais com a família, assemelha-se hoje ao retrato de um tataravô remoto.
Esse perfil era a maior propaganda do capitalismo contra seu contendor na
Guerra Fria. E não se passaram mais de quatro décadas do declínio desse
paradigma!
Na Europa Ocidental, os processos de mudança são
heterogêneos. Se os EUA gozam da condição de maior economia mundial e emissor
da moeda mundial, Alemanha e Grã-Bretanha sobressaem sobre os demais países na
adaptação aos novos padrões, mas não sem custo social, com aumento da
informalidade e redução de direitos, especialmente previdenciários. Este é
maior nos demais países da União Européia (vide a recente mobilização nacional
na França contra a piora das regras previdenciárias propostas pelo governo)
e chega à beira do
abismo naqueles que demonstraram sua vulnerabilidade
face à crise econômico-financeira deflagrada em 2008. No Leste, a
desorganização do modelo estatal deu lugar a uma espécie de capitalismo
selvagem, gerador de enormes migrações que conturbam o mercado de trabalho da
parte ocidental do continente. A Rússia e outras repúblicas da ex-URSS voltaram
à condição de fornecedoras de matérias-primas aos países desenvolvidos – como
mostra a crise do gás natural, objeto de conflito com a Ucrânia que quase
chegou às vias de fato e ameaçou a Europa desenvolvida de desabastecimento
energético. E a classe trabalhadora, antes oprimida pelos capatazes do Estado,
hoje se submete à nova classe empresarial em atividades de baixo valor
agregado, vê muitos de seus integrantes desempregados ou subempregados e
assiste à luta de facções quase mafiosas pelo controle político e dos recursos
produtivos do país. Por toda parte, crescem o desemprego e a informalidade,
origem de maior precariedade social. E esse panorama somente se agravou com a
eclosão da presente crise mundial.
Na América Latina, o que já não era tão sólido antes da
década perdida tornou-se dramático a partir da mesma. Crescimento exponencial
da informalidade, que para o Brasil é estimada em pouco menos da metade da população
ativa na primeira década do novo milênio; ampliação dos contingentes excluídas
de padrões mínimos de vida digna, com a falta de oportunidades de emprego
formal, educação e qualificação profissional8; deterioração dos
serviços públicos, caos urbano e metropolitano e inchaço de favelas e
habitações precárias, povoaram as cenas típicas do subcontinente.
Os anos recentes viram uma reviravolta política em
diversos países latino-americanos, com a ascensão de governos mais preocupados
com a redução da dívida social e com o fortalecimento da capacidade de
intervenção dos Estados nacionais. O Brasil é um exemplo, mas não o único. Nos
últimos oito anos, foram gerados mais de quinze milhões de empregos formais,
comparativamente aos menos de um milhão criados nos oito anteriores. A
recuperação paulatina do salário mínimo e das aposentadorias, as políticas
redistributivas lideradas pelo Bolsa-Família, a ampliação do crédito, as
robustas reservas cambiais acumuladas desde 2002 e a estratégia anticíclica
bem-sucedida no auge do impacto da crise mundial sobre a economia brasileira
deram a esta uma agilidade para superar tais impactos e retomar o crescimento
econômico em tempo recorde. Felicitações são merecidas, mas o
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8 Para uma análise desses processos sob o enfoque jurídico, ver Brito
Filho (2010).
desafio permanece. A dívida social sobressalente ainda é
vultosa e deve ser enfrentada com ampliação das políticas públicas bem
sucedidas do período recente.
Em resumo, vivemos em um mundo em que o modelo dos Anos
Dourados vem se tornando uma lembrança quase virtual, uma relíquia do passado.
Em nosso país e em alguns vizinhos da América Latina, houve avanços
importantes, mas continua a existir um déficit acumulado de exclusão social e
negação dos principais direitos trabalhistas e previdenciários para camadas
ainda amplas da população. Esse quadro permite compreender as razões da OIT
para lançar agendas pelo trabalho decente, que recuperem boa parte das
conquistas eliminadas pela emergência das políticas liberais de matriz
conservadora ao redor do planeta.
4. Algumas Propostas para a Difusão do Trabalho Decente no Brasil
Ao final de 2008, o cenário internacional apresentava um
quadro econômico sombrio, com a crise do mercado imobiliário americano
espraiando-se para o sistema financeiro dos EUA e do resto do mundo, e por esta
via, atingindo fortemente a produção, o consumo e os investimentos em todo o
planeta. Dois anos depois, após um forte movimento de intervenção do Estado em
vários países, inclusive no Brasil, nos campos da política monetária e fiscal,
o quadro é de retomada de crescimento econômico. No caso brasileiro, a
perspectiva do crescimento do PIB nesta primeira metade da década é de pelo
menos 5 % ao ano em média.
O ambiente de crescimento econômico e de expansão do
emprego recoloca condições favoráveis para uma política de difusão do trabalho
decente9, a ser executada pelo poder público (Federal, Estadual e
municipal) e pelos agentes privados (empresariado, movimento sindical,
representações da sociedade civil e terceiro setor). Vale lembrar, neste
sentido, as três prioridades lançadas pelo Governo Federal, em maio de 2006, no
Conselho Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, em relação à Agenda
Nacional do Trabalho Decente, a saber: 1) gerar mais e melhores empregos,
com igualdade de oportunidades e de tratamento;
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9 Entre
outras oportunidades abertas pela retomada do crescimento econômico, combinada
com o diálogo social, está a melhor repartição dos ganhos de produtividade. De
acordo com o IBGE, a produtividade do trabalho teve crescimento de 84% entre
1988 e 2008. No mesmo período, o rendimento médio sofreu uma retração de 37%.
2)
erradicar o trabalho infantil e o
trabalho escravo; 3) fortalecer o diálogo social e o tripartismo, como
instrumento de governança.
Em face do cenário mencionado e destas prioridades da
agenda do trabalho decente no Brasil, é que apresentamos a seguir, de maneira
itemizada, algumas proposições de ações para serem debatidas e articuladas
entre o setor público e privado, visando a mencionada difusão do trabalho
decente no Brasil.
a) Intensificar as já existentes políticas de fiscalização e penalização criminal e econômica ao trabalho escravo, bem como a retirada das crianças do trabalho, por meio da concessão de bolsas de estudo para aquelas que voltam à escola.
b)
Dar
continuidade à política de valorização do salário mínimo, que vem sendo
executada desde 2004 pelo Governo Federal, por meio de aumentos nominais do
salário mínimo em patamares superiores ao crescimento da inflação.
O impacto sobre a previdência – maior obstáculo a uma
política de valorização do salário mínimo no Brasil, em virtude de o salário
mínimo se constituir no piso do benefício previdenciário – poderia ser
minimizado com uma reforma tributária, inclusive com a aprovação do Imposto
sobre Grandes Fortunas, que canalizasse novos recursos para a Previdência.
Além disto, a política de valorização do salário mínimo
pode ocorrer também por intermédio da redução dos impostos sobre a cesta básica
e de outros itens que compõem os gastos dos trabalhadores de baixa renda.
c) Incentivar acordos nacionais bipartites (negociações e convenções coletivas de trabalho envolvendo empresariado e representações sindicais10) e tripartites (poder público, empresariado e movimento sindical) que tenham como objeto a melhoria da remuneração e das demais condições de trabalho dos segmentos mais vulneráveis do
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10 A perspectiva sindical, em particular da maior central sindical do
Brasil, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), pode ser obtida a partir da
leitura de DAU (2010 a; 2010 b).
mercado de trabalho – acordos estes a serem estabelecidos por setor (trabalho doméstico, rurais, construção civil, comércio e prestadores de serviços) e/ou por segmento social (jovens, mulheres, negros, deficientes)11.
d) Enfrentar o debate dos trabalhadores autônomos e do
microempreendedor individual
O trabalho autônomo é uma realidade. É preciso enfrentar
este desafio. Neste sentido, do nosso ponto de vista, um dos programas
potencialmente vigorosos, que pode contribuir em larga escala para a difusão do
trabalho decente no Brasil, é o que constitui e apóia o Microempreendedor
Individual (MEI).
A Lei Complementar nº 128, de 2008 - e que alterou a Lei
Geral das Micro e Pequenas empresas nº 123, de 2006, assinada pelo Governo Lula
- busca incentivar a formalização do “microempreendedor Individual”, que é o
pequeno negócio que tem receita mensal de até R$ 3000,00 ou anual de até R$
36000,00. A Lei incentiva a constituição formal deste trabalhador como empresa
(com o direito de emitir notas fiscais), bem como possibilita sua inclusão
previdenciária. O MEI poderá, ainda, contratar formalmente até um funcionário
pagando taxas menores do que as pagas
por uma empresa de maior porte. No caso do MEI, as taxas serão de 3% para a
previdência e 8% para o FGTS sobre o salário mínimo por mês. Neste caso, o
empregado contribui com 8% do seu salário para a previdência.
Trata-se de um programa social e econômico de grande
alcance, porque lida com milhões de pessoas que se encontram nesta situação de
trabalho hoje efetivamente precarizada. Nesta, encontram-se vários ambulantes,
cabeleireiras, manicures, motoboys, confeiteiras, sapateiros, borracheiros,
costureiras, marceneiros, vendedoras de cosméticos, chaveiros, pintores, entre
tantos outros. O Sebrae listou quatro centenas de atividades que poderiam ser
enquadradas como microeemprededores individuais.
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O formato do programa requer que o microempreendedor interessado acesse um site oficial (www.portaldoempreendedor.gov.br) e faça o seu cadastramento. A partir daí, e recolhendo o valor de aproximadamente R$ 60,00 por mês (que já inclui o pagamento de ISS, ICMS e INSS), ele poderá emitir nota fiscal e ter direito aos benefícios previdenciários. O MEI,
11 Para o debate específico do trabalho decente no meio
rural, ver GAMA (2006). Sobre a importância do tema do trabalho decente no
trabalho doméstico, ver SANCHES (2009).
devidamente cadastrado, está isento do IRPJ, da CSLL, do
PIS, da COFINS, do IPI e da contribuição patronal ao INSS.
A lei federal, para ter efeito pleno, necessita ser
regulamentada por lei estadual e também municipal.
e) Aproveitar a oportunidade gerada pelos investimentos para a Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos (2016) com vistas a promover protocolos de entendimento com governos, instituições organizadoras, empresas e movimento sindical, com o objetivo de garantir o trabalho decente. Os setores-foco desta ação são a construção civil, a hotelaria, os aeroportos e os transportes.
f)
Promover
Grupo de Trabalho tripartite para sugerir alterações necessárias na
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), respeitando-se as diretrizes de
preservação dos direitos sociais e do incentivo à negociação coletiva.
g)
Aprovar,
no âmbito do Congresso Nacional, legislação que regulamente e controle a
terceirização.
h)
Buscar
estabelecer, no âmbito das multinacionais, juntamente com os sindicatos de
outros países, acordos marco global (international
framework agreement), que garantam empregos de qualidade e o trabalho
decente na matriz, nas subsidiárias e na cadeia produtiva em geral.
5 O caso da Região do ABC e o
Decreto Municipal de São Bernardo do Campo em prol do Trabalho Decente
Realizado em março de 2009, em São Bernardo do Campo, o
Seminário “O ABC do Diálogo e do Desenvolvimento” - que reuniu Prefeituras,
Consórcio Intermunicipal dos sete municípios
do Grande ABC, Agência de Desenvolvimento Econômico do ABC,
representações empresariais, sindicais e da sociedade
civil - constituiu Grupo de Trabalho responsável pela elaboração da Agenda
Regional do Trabalho Decente na Região do ABC12.
A partir da constituição do “GT pelo Trabalho Decente no
ABC”, montou-se o “Comitê Gestor da Agenda”, que foi instalado formalmente no
início de fevereiro e composto por representantes dos trabalhadores, dos
empresários e do poder público no ABC.
Após a elaboração do “diagnóstico” do déficit de
trabalho decente na Região, a difusão da proposta de Agenda e a organização de
uma série de seis pré-conferencias por cidade, realizou-se a 1ª Conferência
Regional de Trabalho Decente do ABC, em meados de 2010, com a participação da
OIT, Prefeituras, Ministério do Trabalho, empregadores e sindicatos.
A Agenda Regional do Trabalho Decente no ABC trabalha
com as seguintes áreas temáticas, visando a promoção do trabalho decente na
região: trabalho e renda; proteção social; Igualdade de oportunidades e de
tratamento e Diálogo social.
Antecipando-se a esta própria agenda regional, cabe
destacar a iniciativa do Governo de São Bernardo do Campo, que é a do Decreto
Municipal em prol do Trabalho Decente. Com esta medida, que é pioneira no
Brasil, as empresas ganhadoras de licitações terão que garantir aos seus
empregados condições de trabalho decente.
Estabelece o Decreto:
Gabinete do Prefeito Decreto
Dispõe sobre o incentivo à prática do Trabalho
Decente nas contratações feitas pela Administração Pública do Município de São
Bernardo do Campo,
LUIZ MARINHO, Prefeito do Município de São Bernardo do Campo, no
uso de suas atribuições legais, e
Considerando os preceitos estabelecidos pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT) relativos ao Trabalho Decente, Considerando ainda que o respeito à
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), bem como aos acordos e convenções
coletivas de trabalho estabelecidos entre os representantes de trabalhadores e
dos empregadores é condição fundamental para o Trabalho Decente,
![]() |
12 A Região do ABC, que fica na Grande São Paulo, reúne
sete municípios: Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano, Diadema.
Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra.
Resolve:
Artigo 1º. Todos os procedimentos relacionados à
contratação de obras e serviços no âmbito da Administração Municipal deverão
estabelecer, como incentivo à prática do Trabalho Decente, a necessidade de
que, previamente à lavratura do ajuste, as empresas declarem, expressamente, o
compromisso com tal prática.
Parágrafo único. Considera-se ‘Trabalho Decente’
para os efeitos deste Decreto, aquele tido como um trabalho produtivo e
adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, eqüidade e
segurança, sem quaisquer formas de discriminação, e capaz de garantir uma vida
digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho.
Artigo 2º. Este Decreto entra em vigor na data de
sua publicação, revogada as disposições em contrário.
Gabinete
do Prefeito, em 12 de março de 2010.
Luiz
Marinho - Prefeito do Município de São Bernardo do Campo
Este decreto tem um importante caráter simbólico e
prático. Não apenas porque as empresas fornecedoras de serviços para o poder
público terão maiores dificuldades de utilizarem da precarização da mão-de-obra
para aumentarem sua competitividade nas licitações, mas também porque o decreto
poderá ser reproduzido em vários outros municípios do País, como é o caso de
Mauá, na própria Região do ABC, que recentemente também aprovou decreto
municipal semelhante.
Conclusão

Recuperar as condições de dignidade
no trabalho13 é hoje uma prioridade mundial e também brasileira,
como resposta a essa regressão histórica.
O esforço pela implementação do trabalho decente requer
uma combinação de políticas públicas e atitudes dos diversos atores sociais.
Será um processo complexo, mas sua realização é plenamente possível, como
mostram as ações e diretrizes sugeridas neste artigo. E as iniciativas já
adotadas em diferentes níveis da federação brasileira indicam que já passamos
da palavra à ação. Resta ampliar e generalizar tais iniciativas, com a
convicção de que não existe destino previamente traçado, nem o retrocesso
social é uma inevitabilidade histórica. Essa convicção já se manifestou
reiteradamente nesta década e deve se consolidar na atividade cotidiana de
todos os atores sociais e políticos do País.
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DAU, Denise Motta. Trabalho
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2010.
. Enfrentar
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<http://www.cut.org.br/secretarias-nacionais/artigos/4352/enfrentar-a-precarizacao-e-avançar-
para-o-trabalho-decente>. Acesso em: 11/09/2010.
![]() |
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13 Para uma discussão conceitual e uma recuperação histórica do conceito
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